Lisboa vista por Os Corvos de Leitão de Barros e do DN

Para lembrar a longa colaboração entre Leitão de Barros e o jornal, o DN foi falar com a neta e biógrafa, Joana Leitão de Barros, ​​​​​​​e publica algumas cartas inéditas do seu espólio.
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Entre 1953 e 1967, a sua coluna Os Corvos, publicada aos domingos no Diário de Notícias, mereceu o aplauso de muitos milhares de leitores dos mais diversos quadrantes da sociedade portuguesa. Com uma liberdade permitida a poucos nessa época, o realizador, dramaturgo, cenógrafo e jornalista José Leitão de Barros criticou, enalteceu e comoveu-se com os mais diversos aspetos da vida de Lisboa, essa cidade que amou como poucos e à qual "ofereceu" a invenção das marchas populares. Para lembrar a importância dessa longa colaboração, o DN foi falar com a neta e biógrafa, Joana Leitão de Barros, ​​​​​​​e publica algumas cartas inéditas do seu espólio.

Autêntico "homem do Renascimento", tantas foram as disciplinas a que se dedicou com empenho e paixão, José Leitão de Barros (1896-1967) ficou para a história do século XX português enquanto realizador de filmes que se tornaram clássicos do nosso cinema como Lisboa; Crónica Anedótica; Ala-Arriba!; Camões ou Inês de Castro. Mas o cinema foi apenas a face mais espetacular do seu gosto inato pela comunicação, que também o levou a colaborar regularmente com alguns dos jornais e revistas mais importantes da sua época, mas sobretudo com o Diário de Notícias.

A ligação de Leitão de Barros ao DN começou ainda na juventude, com a direção do magazine semanal Notícias Ilustrado, que introduziu uma autêntica revolução gráfica no muito convencional panorama da imprensa da época. Como escrevem as suas netas Joana Leitão de Barros e Ana Mantero no livro Leitão de Barros - A Biografia Roubada (ed. Bizâncio, 2019): "No mercado nacional predominam as revistas de pendor literário. O Notícias Ilustrado é anunciado como o mais moderno jornal gráfico português, onde vibrará o espírito nacionalista (...) vai ser o grande ecrã da vida nacional onde todos podem e devem ir vê-la." Entusiasmado com a rotogravura, 'técnica que parece quebrar limites na criatividade gráfica', Leitão de Barros inspira-se em revistas como as alemãs Berliner Illustriertte Zeitung, a francesa Vu e, talvez, algumas russas." O sucesso é imediato: "A edição do jornal é anunciada na primeira página do Diário de Notícias de 13 de fevereiro de 1928. Da nova publicação, de visual vanguardista, é feita uma edição de dupla página. Vai ser distribuída gratuitamente, seis dias mais tarde, ao público que se junta para ver passar o corso de Carnaval na Avenida da Liberdade. A mesma edição reduzida chega, depois ao resto do país, juntamente com o Diário de Notícias. E, só então, é posto à venda o número zero - em Lisboa, Porto e Coimbra - que esgota." Durará até 1935.

Nas páginas do Notícias Ilustrado, Leitão de Barros assinou também as primeiras crónicas sobre outra paixão que nunca o abandonaria, a cidade de Lisboa. Um tema que o faria voltar ao DN, quase duas décadas depois, entre 1953 e a data da sua morte, 1967, numa das colunas mais lidas da (longa) história do jornal, a que daria o bem alfacinha título de Os Corvos. Como nos diz a neta Joana, "o autor conheceu de perto muitas das grandes capitais do mundo, em trabalho e em estudo, e trouxe para Os Corvos a sua visão cosmopolita e desapiedada de Lisboa. Os Corvos, e antes disso a crónica A Cidade, publicada também pelo DN, refletem essa ligação muito direta ao urbanismo e ao quotidiano da cidade. Foi ouvido pelos vários presidentes da Câmara de Lisboa, durante décadas, que o consultavam e lhe acolhiam muitas vezes os reparos, mas isso não lhe calou a crítica demolidora n'Os Corvos, como aconteceu na transformação do marquês de Pombal e de Alfama."

"Nunca saem destes passarocos elogios com água no bico", assegurava o cronista. "Mesmo quando dizem tolices, é a seco." Domingo após domingo, aborda quer temas da maior importância quer observações do dia-a-dia, que são, afinal, o retrato de uma Lisboa que já não há. Como esta saborosa crónica sobre os rapazes que salvavam os gatos vadios de morte certa às mãos dos funcionários municipais: "Há anos já, numa viela de Alcântara, em certa noite de caçada felina, a rapaziada do sítio decidiu guerrear, a favor dos gatos, a carreta fúnebre da câmara. A viatura foi tomada de assalto. Houve pedradas, gatos e almeidas assanhados. Irascíveis, armados de uma espécie de grande camaroeiro, os pescadores de gatos lançaram as redes em vão. Por fim, os gatos, em bandos hirsutos, fugiram da carroça. E um garoto mais audaz "caçou" o próprio almeida enfiando-lhe à traição um enorme camaroeiro pela cabeça abaixo. Por muito louca que seja a comparação, nessa noite, aos "homens-cães polícias" opuseram-se rapazes que tinham bastante de gatos - e a ternura de que falava Júlio Camba."

Outras vezes, a doçura cedia lugar à sátira, como esta que toma por "alvo" os polícias-sinaleiros: "Parece que, na realidade, o polícia-sinaleiro tem o que se pode chamar 'cor local'. Há alguma coisa de faena nos guardias de Madrid; são suaves ou violentos os flics da circulation em Paris, com os gestos da halupée e já para os méxicos e venezuelas há enérgicos sinaleiros com requebros de rumba. No Rio, vedetas do trânsito, que marcam o compasso dos sambas motorizados, e em Londres os guardas usam a frieza indiferente dos nevoeiros míopes. Nós temos a tristeza fadista no semblante dos ossos altos comandos de esquina. É raro terem um sorriso (fora da estação dos perus). Parece que criar o sinaleiro 'esperanto' e o peão universal é uma necessidade absolutamente ONU."

A crítica, de que não abdicava, trazia-lhe, no entanto, muitos amargos de boca: "Em Portugal criou-se o complexo, em certos serviços, de que a crítica - mesmo aquela que é manifestamente construtiva, colaboradora e desinteressada - constitui uma azeda agressão. Alguns patetoides ingénuos julgam-se infalíveis e fazem gala (como se isso não fosse contra eles próprios) em desprezar quaisquer conselhos, alvitres, sugestões e até informações concretas que os habilitaram a melhorar as soluções que a sua débil inteligência encontrou para os problema que são da sua responsabilidade e obrigatoriedade, solucionar." Como nos diz Joana Leitão de Barros, "manter a coluna durante tanto tempo deve ter-lhe exigido um equilíbrio constante, elogiava aqui para poder criticar ali". Mas existem documentos em que se queixa amargamente da censura.

Através das crónicas do DN conquistou um espaço de influência raro, de alguma independência, mas que também lhe gerou muitos anticorpos dentro do sistema, como se veria. Mas os leitores percebiam que havia ali uma opinião desassombrada, e talvez por isso se encontrem no espólio várias cartas de cidadãos que se diziam contra o regime, e que perdem tempo a escrever-lhe. Está por fazer o estudo d'Os Corvos, percebendo-se não apenas quem é elogiado ou criticado - artistas, decisões políticas, tiques sociais - mas igualmente quem e o que ignora. N'Os Corvos estão as questões sociais que escapavam, no limbo dos temas que se julgariam menos políticos, como o trânsito com que Lisboa não está preparada para lidar, a independência das mulheres, a pobreza e a falta de acesso à educação. É preciso ver o seu filme Lisboa, Crónica Anedótica para entender o Leitão de Barros d'Os Corvos, escritos décadas depois."

O público adere entusiasticamente. Aos domingos, dia em que se publicava a crónica, o DN chega a vender 500 mil exemplares e as melhores são reunidas em dois volumes com ilustrações de João Abel Manta. Chegará também à Rádio Renascença como rubrica do programa 23.ª Hora. Em poder de Joana Leitão de Barros está a volumosa correspondência que o avô recebia no jornal. De muitos anónimos, que recorriam à sua "provedoria" para os assuntos que os inquietavam, a figuras da vida pública, dos vários presidentes da Câmara de Lisboa a Marcello Caetano, a primeiras figuras do teatro português como Beatriz Costa, Artur Semedo, Vasco Santana ou Henrique Santana.

Nascido a 22 de outubro de 1896, no Porto, José Júlio Leitão de Barros frequentou, já em Lisboa, a Escola de Belas-Artes, as faculdades de Ciências e Letras de Lisboa e exerceu a profissão de professor de Desenho, Matemática e Geometria Descritiva nos liceus Passos Manuel e Camões. Para além do ensino, dedicou-se também ao jornalismo, colaborando nos jornais mais importantes da sua época, através de artigos, reportagens, entrevistas, críticas e crónicas. Colaborou no teatro como autor e cenógrafo, ficando o seu nome, por outro lado, também ligado à pintura, área em que o seu valor foi reconhecido em exposições e prémios, tanto em Portugal como no estrangeiro. Evidenciou-se no cinema a partir de 1918, através da Lusitânia Film (uma das várias tentativas de lançar uma produção industrial em Portugal nas décadas de 1910 e 20), para a qual realizou dois filmes e um terceiro que não chegou a terminar. Na sua vasta filmografia, distinguem-se as superproduções históricas Bocage (1936), Inês de Castro (1945) e Camões (1946), e também Lisboa, Crónica Anedótica (1930), Maria do Mar (1930), A Severa ( de 1931, no que foi o primeiro filme sonoro português), As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Ala-Arriba! e Maria Papoila (1937), que constituem alguns dos mais marcantes momentos do cinema português dos anos 1930 e 40.

Mas o seu sentido de espetáculo extravasava das salas para as ruas. Em 1932, com o objetivo de revitalizar o Parque Mayer, Leitão de Barros percorreu as coletividades de Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique para que cada uma mostrasse o que tinha de particular, num desfile realizado no Teatro Capitólio. O sucesso foi enorme. Dois anos depois, os bairros envolvidos já eram 12 e os marchantes 800. Afeiçoado a este tipo de manifestação artística, seria ainda secretário-geral da Exposição do Mundo Português, em 1940, e responsável pelo cortejo histórico de 1947, que, a 6 de julho de 1947, assinalou com monumentalidade o oitavo centenário da conquista de Lisboa aos mouros.

Em 1923, casou-se com a artista plástica e professora Maria Helena Roque Gameiro (filha do aguarelista Alfredo Roque Gameiro) com quem teve dois filhos, Maria Helena e José Manuel, criando um autêntico clã de artistas, de que faziam parte a cunhada, Raquel (irmã da mulher), o pintor Jaime Martins Barata (casado com outra cunhada), Cottinelli Telmo, casado com uma irmã de Leitão de Barros, enquanto uma outra irmã, Teresa, professora de liceu, se dedicou com energia à defesa dos direitos das mulheres.

Em 1966, já doente, não pousou ainda a pena d'Os Corvos mas despediu-se com uma festa a rigor, num jantar oferecido a amigos e individualidades da vida portuguesa, na casa de família em Colares. Lá estiveram artistas, escritores, políticos do regime e opositores, e uma representação do Diário de Notícias, encabeçada pelo diretor Augusto de Castro e pela coordenadora do suplemento Artes e Letras, a escritora Natércia Freire. Leitão de Barros morreu, aos 70 anos, na sua Lisboa, a 29 de junho de 1967. Era dia de São Pedro e cheirava a manjerico.

Beatriz Costa
Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1961

Meu querido Leitão de Barros
O Chianca (de Garcia) ficou um dia em casa! Almoçou e jantou Corvos, disse-me que nunca tido comido melhor!... Já se sabe que quem está com razão é o freguês, que neste caso sou eu porque paguei o meu rico volume ali na Sá da Costa. Qualquer ideia sua que se ligue às minhas discutíveis faculdades só me pode trazer esperança de algo novo de que tanto preciso, eu e o pobrezinho do teatro chamado (ou caluniado) ligeiro. Não espero ficar cá muito tempo porque por cá as coisas estão pretas... logo que arrume as prateleiras da vida ponho o saco às costas e lá vou eu aumentar a confusão desse jardim à beira encalacrado. Uma comédia musicada vinha mesmo a calhar, estou farta de fazer rapazes (salvo seja...). Desejo-lhe um feliz Natal. Que os Corvos sigam em 62 a escachar pessegueiros.
Um grande abraço da sua admiradora e grata amiga
Beatriz Costa

Marcello Caetano
Lisboa, 26 de setembro de 1960

Meu Exmo amigo
Lisboeta de gema - embora com as quatro costelas beiroas e, ainda por cima, todas da comarca de Arganil - tenho o culto dos corvos. Aprendi que eles eram as aves simbólicas e tutelares da cidade quando, em menino, visitava o claustro da Sé onde o cabido ainda sustentava, piedosamente, por gratidão pelo serviço prestado de escolta aos despojos do mártir São Vicente, dois ou três lustrosos e pacíficos corvos, que se passeavam pelo meio das pedras e das capelas com ar gravemente canónico (apenas perturbado por uns pulinhos de quando em vez). Por isso li desde o primeiro dia com reverência a secção do Notícias, mesmo ainda antes de saber quem fosse o autor. E mais de uma ocasião a abençoei. Hoje mesmo a minha atitude é de considerá-la permanentemente abençoada... Temos neste país oscilado entre dois extremos quanto à vida social: o do conformismo e o do bota-abaixo. A crítica dos costumes foi admirável e implacável nas Farpas e nos Gatos. Mas embora o Ramalho tivesse uma elegância e uma certa simpatia, ingénua e militante preocupação pedagógica que perdoava muita coisa e que falta de todo ao Fialho, criou-se com eles uma escola de espírito crítico demolidor em que se sentiu à vontade o clássico mau fígado nacional, com a sua verrina irritada e despeitada. Porque o mal dos mestres são os discípulos. O que por aí apareceu até há trinta anos de ortigõeznhos e de fialhinhos, mas com tanto fel e tão má educação!
(...)

Henrique Santana
Capital do Império, aos 21 de outubro de 1963 da era cristã, XXXIII da R.N. e 40 do signatário

Meu querido Leitão
Fui esta manhã acordado com atléticos safanões e guinchos guturais de entusiasmo, dados pela minha criada, que em vez de me servir o pequeno-almoço me zurzia com o Diário de Notícias ao mesmo tempo que gritava: "Veja o que diz o jornal a seu respeito! Veja, que nem eu queria acreditar. Ainda ensonado, folheei o jornal ansioso, à procura nas parangonas mais fortes duma rubrica onde visse o meu nome. P'lo sim p'lo não, fui dando uma tímida olhadela às rubricas: "Crime repugnante", "Mais uma vez o truque do vigésimo viciado", "Desordem numa feira", "Brincou com fósforos". Já mais calmo e como me não fizessem referência, procurei cheio de vaidade uma rubrica que ao lado do meu retrato me fizesse justiça: Lord Home anunciou a constituição do governo, no qual Henrique Santana participa, e porque não esta "A Henrique Santana por ser considerado o melhor ator mundial, foi concedido o título de Sir".
(...)
É claro que fui logo ler Os Corvos que é (agora sans blague) o que mais me interessa, me diverte e me estimula de toda a leitura dos meus domingos. Os Corvos, além de serem os artigos com maior número de leitores em Portugal - e para saber que o são não é preciso ir ao Instituto Nacional de Estatística, basta ouvir o enorme eco que eles fazem, com as suas ironias, as suas subtilezas e o seu espírito jovem; um eco que entra em toda a parte, nos bastidores, nos comboios, nas repartições, nos ministérios, nas fábricas, nas lojas, não há um cantinho onde não se murmure com prazer sobre Os Corvos - mas além do número de leitores o que mais me espanta era consegui-los com ideias inteligentes, e numa forma espirituosa e sem grosseria. Afinal, já descobri o segredo: a fórmula do segredo é fácil - Os Corvos são fotografias do que todos nós pensamos e não sabemos dizer. A única dificuldade é que essa maravilhosa máquina fotográfica das ideias só a tem o querido Leitão de Barros.
(...)
Um grande "xi" do Henrique Santana

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