Inimigos das causas

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Dezassete anos depois de fazer capa do icónico álbum dos Nirvana que mostrava um bebé nu debaixo de água a perseguir uma nota de dólar, Spencer Elden descrevia à CNN a felicidade que esse acaso ainda trazia à sua vida. Aos 17 anos, contava que tinha acabado de receber mil dólares para reproduzir a fotografia (agora de calções) de Nevermind - voltaria a fazê-lo aos 25 - e que frequentemente, ao reconhecerem-no como protagonista daquela capa, pagavam pela sua presença nos mais diversos eventos. Relatava ainda como esse momento aos 4 meses de existência lhe rendera um estágio com o artista que criara o poster que se tornou imagem de marca na campanha de Obama às presidenciais americanas - uma oportunidade de ouro para alguém que, como ele, apontava a um futuro de artista plástico. "A fama que ganhei tem-me aberto muitas portas", assumia, enquanto se especulava sobre a possibilidade de ser ator convidado num filme de Hollywood.

Agora com 30 anos, o artista Spencer diz-se vítima de um "tormento emocional", frisa que a sua "identidade e nome estarão para sempre conectados a uma exploração comercial sexual a que foi submetido quando era ainda bebé" e declara que sente que parte dos seus "direitos foram roubados". O que justifica a acusação de pornografia infantil com que acaba de avançar, exigindo uma indemnização de 150 mil euros a cada um dos 15 que considera terem responsabilidades no caso, incluindo a banda, a viúva de Kurt Cobain, o manager e o fotógrafo.

Do outro lado do Atlântico, o museu de arqueologia da Universidade de Cambridge decidiu, no âmbito da sua estratégia antirracista, colar avisos ao lado das estátuas gregas e romanas para explicar aos visitantes que as figuras ali retratadas em gesso não eram todas de raça branca, que havia diversidade também no mundo antigo.

Entretanto, no Brasil, a atriz Alessandra Negrini recordou quando foi banida depois de acusada de apropriação cultural por usar pinturas indígenas num corso de Carnaval - no qual prestava homenagem aos índios brasileiros. No Rio de Janeiro, nesta terça-feira, manifestantes pegaram fogo a uma estátua de Pedro Álvares Cabral.

Até cá, chegou notícia de que uma investigadora cabo-verdiana radicada nos Estados Unidos propunha a inserção de notas explicativas n"Os Maias para assinalar o racismo em passagens como a descrição de Maria Eduarda, "loira, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor de uma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas" (que a professora de Português entende ser desdenhosa referência aos africanos, vistos sempre como menores, não retrato das portuguesas). A ideia não é (ainda) censurar Eça, mas deixar claro para quem o lê que o racismo é mau - já o incesto não lhe merece reparo...

Uma estudante francesa de férias por Lisboa vandalizou o Padrão dos Descobrimentos, com um graffiti a questionar o heroísmo dos navegadores que há 500 anos daqui saíram para o mundo desconhecido.

Servem as amostras de retrato rápido do tempo que vivemos. Queremos falar de extremismo ou podemos dizer que são episódios como estes - e a multidão cega que os propaga e enaltece - os verdadeiros inimigos das causas que dizem defender.

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