Uma semana à janela, atónito

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Esta semana, por três dias, 89 famílias sul-coreanas foram visitar os seus irmãos e primos norte-coreanos. Não se viam há 65 anos, uma separação que pelo seu tamanho indica a demasiada idade que aqueles coreanos já têm e, daí, esse encontro ser provavelmente o último. Os visitantes viajaram de autocarro, uma invenção humana feita para juntar. No momento da volta, foi feita a foto que acompanha esta crónica.

A Guerra da Coreia foi uma separação, entre 1945-49, confirmada por uma guerra de várias potências mundiais, cada uma com o seu lado, norte ou sul, comunista ou não comunista, entre 1950-53. Uma ideia tão intangível como uma posição geográfica, o paralelo 38, decidiu - num lugar de uma cultura e de uma língua milenares - que os seus habitantes passavam a ser uns, de um lado, e outros, do outro, completamente separados. Aos coreanos calhou-lhes esse cutelo.

Os coreanos passaram séculos a construírem-se a si próprios de determinada forma, com raízes tão fortes que poderosos impérios vizinhos (chineses, manchus, mongóis, russos e japoneses) não entravam na península deles. Mas, em menos de dez anos, uma linha imaginária, um círculo tão aleatório como o grau 38 acima do Equador separou os coreanos. Claro que os argumentos foram mais sofisticados: porque uns eram pelo mercado livre e outros pelos planos quinquenais, uns democratas e outros comunistas. Enfim, ideologias...

Mas os factos comezinhos, à dimensão de pessoas, são estes: Ha Shinja, de 99 anos, é sul-coreana, e às suas duas filhas, de 71 e 72, calhou-lhes serem norte-coreanas. Isto é, às três aconteceu-lhes não se verem durante 65 anos, até estes poucos dias. Tantos anos de separação explicam também que o avô Han Jong-ho, 101 anos, foi ver a sua neta pela primeira vez levando 30 pares de sapatos de presente. Lá pensou que só um exagero podia aliviar o absurdo da vida.

Ao fim dos três dias, chegou a passada quarta-feira e a hora do regresso. Olhem para a foto. Os autocarros eram muitos e a foto nem um autocarro inteiro mostra. Aliás, nem devem olhar para os que partem e aos três norte-coreanos que lhes acenam. Como quando queremos aprender muito, fechem o plano para o infinitamente grande e olhem só para o homem frágil, de cantos de boca caídos, à esquerda na foto. E dele olhem para as palmas da mão, coladas ao vidro. Que grito.

Quantos milhares de anos foram precisos para uma espécie, uma lagartixa, por exemplo, saber agarrar-se tão ao teto? Dos homens, sabemos agora que 65 anos são suficientes para termos o impulso de nos agarrarmos desesperadamente à superfície lisa de um vidro. Aparentemente é uma vantagem nossa, aprendemos mais depressa do que as outras espécies. Mas não nos regozijemos, são talvez os nossos defeitos tremendos que nos levam a aprender tão depressa.

Também esta semana começámos a ver uma luzinha ao fundo do túnel em mais dois absurdos da vida. Donald Trump, um inqualificável, atualmente o presidente do país mais poderoso do mundo e com das mais nobres instituições do mundo (The New York Times, por exemplo), Trump, esse impróprio ao vivo e no Twitter, sofreu por estes dias duas fortes derrotas. Dois cúmplices foram condenados.

Essa instituição, não sei se já disse, uma das mais nobres do mundo, The New York Times, que nestes dois últimos anos, na América, fez mais pela democracia do que qualquer universidade e qualquer político ou partido, o NYT, pela primeira vez, falou de impeachment. Vamos pelo argumento de autoridade: uma autoridade moral, o NYT, já considera que Trump pode ser politicamente derrubado por crimes graves. Não é uma certeza, mas ajuda-nos a não continuarmos atónitos e com as palmas das mãos cravadas no vidro que nos separa desta América.

A segunda tolice que tem parecido irremediável, o brexit, foi também abalada esta semana. Theresa May apresentou uma lista negra (25 pontos) com os malefícios de uma saída dura da UE. Até os dons de esperma (a Dinamarca contribui com três mil anuais) iriam complicar as inseminações na Grã-Bretanha... Os 250 mil reformados britânicos a viver em Espanha teriam de receber em bancos europeus... Ora, os irredutíveis do corte com a Europa, fortes no partido da primeira-ministra, apostam em cedência nenhuma.

Assim, a lista dos 25 pontos pode prenunciar um aviso: Theresa May tem como última carta apresentar ao seu partido a hipótese de um segundo referendo sobre o brexit. Oxalá. Os homens fazem muitos erros, mas nem sempre precisam de 65 anos para topar uma tolice.

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