O processo de escolha da nova procuradora-geral da República é, a todos os títulos, lamentável. Para a justiça e, sobretudo, para a política. Desde logo porque, para a história, este momento ficará, simultaneamente, como uma das maiores tentativas de politização da justiça e de judicialização da política..Mas vamos por partes: a discussão começa em janeiro com um acaso (sim, um acaso), quando a ministra da Justiça diz na TSF que o mandato da PGR é longo e único. Estava dado o tiro de partida, pensou a direita, para, à falta de melhor agenda, cavalgar um tema que, em princípio, seria incómodo para o governo de António Costa..Numa primeira fase, tratou-se de desfazer o mito criado por Francisca van Dunem, de que a lei não permitia a renovação do mandato. Arrasada a interpretação jurídica da ministra - a esmagadora maioria dos juristas, constitucionalistas ou entendidos em direito não lhe davam razão -, chegou a fase da teoria da conspiração. O governo, dizia a direita, não queria manter Joana Marques Vidal por esta ser incómoda para o PS. O que aconteceu a partir daqui foi o maior favor que a direita podia ter feito ao governo. A pressão pública para manter Marques Vidal no cargo obrigou o executivo - e, porque não dizê-lo, o próprio Presidente da República - a entrincheirarem-se até ao momento em que tivessem de tomar uma decisão..António Costa era quem tinha mais a perder e seria sempre - cheguei a escrevê-lo - preso por ter cão e preso por não ter. Se reconduzisse Marques Vidal, era porque tinha cedido à pressão e teria os socialistas à perna. Se a substituísse, seria sempre acusado de uma vendetta pela Operação Marquês e pelo "irritante" processo da Operação Fizz..A excessiva politização do assunto, por parte da direita - que não me parece ter aprendido nada com o erro -, deu a António Costa a margem de manobra que ele não tinha. Os atores da justiça fizeram o resto..Quem acha que um juiz ou um procurador não faz política, engana-se. No Ministério Público, como em todo o sistema de justiça, o que não faltam são atores judiciais a fazer política, todos os dias, há muitos anos. Muitos deles são lá colocados estrategicamente pelos partidos políticos, numa espécie de equilíbrio democrático, que vai sendo jogado a cada nomeação, a cada concurso público. Claro que quase todos batem com a mão no peito e gritam até que a voz lhes doa "à política o que é da política, à justiça o que é da justiça". Claro que só os ingénuos acreditam nisso..E esta é, para mim, a gota de água de todo este processo. O momento em que, dentro da justiça, os que queriam a continuidade de Joana Marques Vidal começaram a mexer as pedras necessárias para influenciar a decisão do governo e do Presidente da República..No meio de toda esta trapalhada, há muitas mentiras e outras tantas meias-verdades. Não sei se alguma vez o primeiro-ministro ou o Presidente da República pensaram mesmo em reconduzir Joana Marques Vidal. Não sei sequer se a própria não começou a achar graça à ideia de continuar por mais seis anos - mesmo que já tivesse defendido o mandato único -, tamanho era o clamor público pela sua continuidade. Mas estou convencido de que a pressão política - à direita, sobretudo - e do meio judicial teve o efeito contrário àquele que pretendiam os que queriam que Marques Vidal continuasse.. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa ficaram entrincheirados e não gostaram da sensação. A decisão deixou de depender apenas de uma avaliação justa e independente do mandato da atual PGR e cumprir a lei. Manter ou não Joana Marques Vidal passou a significar fazer a vontade à direita, a uma parte da opinião pública e aos atores judiciais que estavam a fazer tudo para que atual procuradora continuasse no cargo. No fundo, manter Joana Marques Vidal significava ceder à pressão e escolher um dos lados..Costa e Marcelo resolveram o assunto com mestria, é preciso dizê-lo. Escolher Lucília Gago tem o efeito de calar todo os que pudessem achar que esta decisão significaria uma mudança de rumo do Ministério Público. Quem melhor para manter o rumo, se não alguém que a própria PGR escolheu para liderar o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa? Os elogios de Marcelo Rebelo de Sousa ao mandato de Marques Vidal completaram a ideia de que nada move o Presidente da República contra a atual PGR. Por último, o que Marcelo defendeu no passado sobre a limitação de mandatos só acrescenta coerência à decisão e fecha o ciclo..É claro que todos estes argumentos terão as suas brechas, mas, para o efeito pretendido - sair bem deste processo -, o Presidente da República cumpriu com distinção. E ainda resolveu um problema a António Costa pelo caminho. A ideia que fica de uma total sintonia entre o Presidente e o primeiro-ministro só beneficia o último: afinal, mesmo que António Costa quisesse a continuidade de Joana Marques Vidal, isso nunca seria aceite pelo Presidente da República. Logo, António Costa está safo..Uma nota final: fui um dos que defenderam publicamente que, entre o deve e o haver, Joana Marques Vidal merecia continuar no cargo. Não porque não seja sensível ao argumento dos mandatos longos e únicos, que aceito e compreendo. Mas, se a Constituição permite a renovação dos mandatos, não é, seguramente, por lapso. É porque quem fez a última revisão quis manter essa possibilidade..Entre o deve e o haver, Joana Marques Vidal não fez tudo bem, mas fez muito pela justiça em Portugal. E dizer isto não retira uma vírgula à competência da nova procuradora-geral da República. Dizer isto é reconhecer o mérito a alguém e isso, nos dias que correm, não é coisa pouca..E há uma lição, julgo eu, a retirar de todo este processo: as jogadas de bastidores tendem muitas vezes a ter efeitos perversos. Neste caso, estou convencido de que foram essas jogadas que empurraram o Presidente da República e o primeiro-ministro para esta decisão..Subdiretor da TSF
O processo de escolha da nova procuradora-geral da República é, a todos os títulos, lamentável. Para a justiça e, sobretudo, para a política. Desde logo porque, para a história, este momento ficará, simultaneamente, como uma das maiores tentativas de politização da justiça e de judicialização da política..Mas vamos por partes: a discussão começa em janeiro com um acaso (sim, um acaso), quando a ministra da Justiça diz na TSF que o mandato da PGR é longo e único. Estava dado o tiro de partida, pensou a direita, para, à falta de melhor agenda, cavalgar um tema que, em princípio, seria incómodo para o governo de António Costa..Numa primeira fase, tratou-se de desfazer o mito criado por Francisca van Dunem, de que a lei não permitia a renovação do mandato. Arrasada a interpretação jurídica da ministra - a esmagadora maioria dos juristas, constitucionalistas ou entendidos em direito não lhe davam razão -, chegou a fase da teoria da conspiração. O governo, dizia a direita, não queria manter Joana Marques Vidal por esta ser incómoda para o PS. O que aconteceu a partir daqui foi o maior favor que a direita podia ter feito ao governo. A pressão pública para manter Marques Vidal no cargo obrigou o executivo - e, porque não dizê-lo, o próprio Presidente da República - a entrincheirarem-se até ao momento em que tivessem de tomar uma decisão..António Costa era quem tinha mais a perder e seria sempre - cheguei a escrevê-lo - preso por ter cão e preso por não ter. Se reconduzisse Marques Vidal, era porque tinha cedido à pressão e teria os socialistas à perna. Se a substituísse, seria sempre acusado de uma vendetta pela Operação Marquês e pelo "irritante" processo da Operação Fizz..A excessiva politização do assunto, por parte da direita - que não me parece ter aprendido nada com o erro -, deu a António Costa a margem de manobra que ele não tinha. Os atores da justiça fizeram o resto..Quem acha que um juiz ou um procurador não faz política, engana-se. No Ministério Público, como em todo o sistema de justiça, o que não faltam são atores judiciais a fazer política, todos os dias, há muitos anos. Muitos deles são lá colocados estrategicamente pelos partidos políticos, numa espécie de equilíbrio democrático, que vai sendo jogado a cada nomeação, a cada concurso público. Claro que quase todos batem com a mão no peito e gritam até que a voz lhes doa "à política o que é da política, à justiça o que é da justiça". Claro que só os ingénuos acreditam nisso..E esta é, para mim, a gota de água de todo este processo. O momento em que, dentro da justiça, os que queriam a continuidade de Joana Marques Vidal começaram a mexer as pedras necessárias para influenciar a decisão do governo e do Presidente da República..No meio de toda esta trapalhada, há muitas mentiras e outras tantas meias-verdades. Não sei se alguma vez o primeiro-ministro ou o Presidente da República pensaram mesmo em reconduzir Joana Marques Vidal. Não sei sequer se a própria não começou a achar graça à ideia de continuar por mais seis anos - mesmo que já tivesse defendido o mandato único -, tamanho era o clamor público pela sua continuidade. Mas estou convencido de que a pressão política - à direita, sobretudo - e do meio judicial teve o efeito contrário àquele que pretendiam os que queriam que Marques Vidal continuasse.. António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa ficaram entrincheirados e não gostaram da sensação. A decisão deixou de depender apenas de uma avaliação justa e independente do mandato da atual PGR e cumprir a lei. Manter ou não Joana Marques Vidal passou a significar fazer a vontade à direita, a uma parte da opinião pública e aos atores judiciais que estavam a fazer tudo para que atual procuradora continuasse no cargo. No fundo, manter Joana Marques Vidal significava ceder à pressão e escolher um dos lados..Costa e Marcelo resolveram o assunto com mestria, é preciso dizê-lo. Escolher Lucília Gago tem o efeito de calar todo os que pudessem achar que esta decisão significaria uma mudança de rumo do Ministério Público. Quem melhor para manter o rumo, se não alguém que a própria PGR escolheu para liderar o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa? Os elogios de Marcelo Rebelo de Sousa ao mandato de Marques Vidal completaram a ideia de que nada move o Presidente da República contra a atual PGR. Por último, o que Marcelo defendeu no passado sobre a limitação de mandatos só acrescenta coerência à decisão e fecha o ciclo..É claro que todos estes argumentos terão as suas brechas, mas, para o efeito pretendido - sair bem deste processo -, o Presidente da República cumpriu com distinção. E ainda resolveu um problema a António Costa pelo caminho. A ideia que fica de uma total sintonia entre o Presidente e o primeiro-ministro só beneficia o último: afinal, mesmo que António Costa quisesse a continuidade de Joana Marques Vidal, isso nunca seria aceite pelo Presidente da República. Logo, António Costa está safo..Uma nota final: fui um dos que defenderam publicamente que, entre o deve e o haver, Joana Marques Vidal merecia continuar no cargo. Não porque não seja sensível ao argumento dos mandatos longos e únicos, que aceito e compreendo. Mas, se a Constituição permite a renovação dos mandatos, não é, seguramente, por lapso. É porque quem fez a última revisão quis manter essa possibilidade..Entre o deve e o haver, Joana Marques Vidal não fez tudo bem, mas fez muito pela justiça em Portugal. E dizer isto não retira uma vírgula à competência da nova procuradora-geral da República. Dizer isto é reconhecer o mérito a alguém e isso, nos dias que correm, não é coisa pouca..E há uma lição, julgo eu, a retirar de todo este processo: as jogadas de bastidores tendem muitas vezes a ter efeitos perversos. Neste caso, estou convencido de que foram essas jogadas que empurraram o Presidente da República e o primeiro-ministro para esta decisão..Subdiretor da TSF