Como o Rio pode tornar-se a cidade mais à direita do mundo

Valham o que valerem, as sondagens indicam que no domingo Jair Bolsonaro se tornará presidente da República. E que Wilson Witzel vencerá o duelo pelo governo do Rio de Janeiro na mesma data. Marcelo Crivella é, desde 2016, o prefeito da capital estadual. Dessa forma, a partir de segunda-feira, dirigida nas esferas federal, estadual e municipal por Bolsonaro, Witzel e Crivella, a Cidade Maravilhosa, que no imaginário do resto do mundo é um modelo de liberalismo nos costumes, com o seu Carnaval e as suas praias onde tudo é mais ou menos permitido, será um dos lugares mais conservadores do planeta..De Bolsonaro já quase tudo se disse e se escreveu nos últimos meses: capaz de defender as causas mais radicais no plano dos costumes, como o ataque a mulheres, homossexuais, negros, índios, nordestinos e outros grupos vulneráveis, tornou-se um impetuoso liberal na economia nos últimos anos, para atender à demanda do seu eleitorado e à sigla do seu nono partido, o Partido Social Liberal (PSL)..Witzel, que vota Bolsonaro, pertence ao Partido Social Cristão (PSC), força política tão à direita como o PSL e presidida pelo pastor Everaldo, um dos principais pontas-de-lança na política da maior das denominações evangélicas do Brasil e do mundo, a Assembleia de Deus. O candidato já prometeu que os traficantes do Complexo do Alemão serão encurralados e abatidos..Crivella, prefeito carioca desde 2016, é um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e sobrinho do fundador, Edir Macedo, que odeia o Carnaval e não acredita na teoria da evolução..Como é que em dois anos apenas o Rio de Janeiro, ex-capital do Brasil e segunda cidade mais populosa do país, se tornou o principal reduto do conservadorismo?."Através do medo", diz ao DN Paulo Baía, cientista político da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Do medo, da segurança pública inexistente na cidade e no estado e da corrupção generalizada dos sucessivos governos", completa..Se a Operação Lava-Jato, entre outras, destapou a corrupção institucionalizada em todo o Brasil, o caso do Rio de Janeiro foi ainda mais emblemático, sob o governo cleptocrata de Sérgio Cabral, membro do MDB de Michel Temer condenado a mais de cem anos de prisão por desvio de verbas incontáveis, próximo de Lula da Silva, do PT, e de Eduardo Paes, o prefeito que era do MDB e que hoje disputa o governo do estado contra Witzel pelo DEM..Para a professora universitária e feminista Mariana Patrício, "a muito grave e prolongada crise económica" é outro fator preponderante para o desvio à direita porque "gera miséria e violência". "Junta-se a isso uma elite conservadora que sempre encarou os pobres como mão-de-obra barata."."Dadas essas faltas de apoio e de interesse nas regiões periféricas, cresceram por lá o tráfico e as milícias fortemente armadas na disputa por território, tendo a polícia ainda um papel catastrófico, ao preferir o confronto a ações de inteligência", prossegue a neta de Rui Patrício, ministro do Estado Novo de Portugal..Diz Mariana Patrício que, por outro lado, "as igrejas pentecostais, se bem que realizem a função de agregação da comunidade, resultam em perseguição às religiões africanas e à cultura popular carioca, na forma do Carnaval, por exemplo"..O prefeito Crivella reduziu em 50% o auxílio financeiro às escolas de samba, não participou neste ano no ato simbólico da entrega das chaves da cidade ao rei Momo e faltou ao desfile na Marquês de Sapucaí. A IURD, da qual o político é bispo, nasceu sob a liderança do seu tio, Edir Macedo, no Rio de Janeiro, um dos estados onde está, por isso, mais acentuada..A jornalista norte-americana Julia Michaels, a viver no Rio desde 1995, encontra motivos semelhantes para a guinada conservadora: "O horror aos corruptos é provavelmente o motivo número um, a frustração com a situação económica também é importante, a que se junta a força dos evangélicos."."O Rio será como as cidades americanas dos anos 70, quando houve black outs e muitos saques ao mesmo tempo que nasceram o rap, o hip-hop e outras formas de resistência cultural dos mais pobres", defende. E ela encontra mais paralelos com os EUA daqueles tempos: "Os eleitores de Bolsonaro, e de Witzel e de Crivella, são a maioria silenciosa que apoiou Richard Nixon depois de muitos anos sob o domínio dos democratas e da agenda anti-Guerra do Vietname.".Finalmente, "há aquele paralelo com a equipa de futebol que está ganhando". "Começa uma onda em torno de quem lidera as sondagens que depois já não para."."Essa onda conservadora "é muito preocupante". "Já me preocupava antes mas vou preocupar-me cada vez mais, já temos muito mais gente morando nas ruas e cada vez mais tiros e mortes", diz Julia..Recém eleita deputada federal, Talíria Petrone, do esquerdista PSOL, alerta para o facto de o Rio "ser governado há muito tempo pelas máfias que dominam os territórios, a política, o dinheiro". Considerada a irmã política de Marielle Franco, vereadora executada no centro da cidade em março, Talíria sente que "a negação da política, por culpa dos escândalos de corrupção de todas as lideranças estaduais, abre brecha para o fascismo e para algumas pessoas se apresentarem como o 'novo' mas que na verdade são o velho porque sempre se aliaram com estes governos corruptos".."O Rio ter ao mesmo tempo Crivella, Witzel, que pelos vistos dá licença para matar, e o Bolsonaro é um facto grave que mostra a cidade como laboratório dessas violências do Brasil todo porque em situações de crise o fascismo e a sociedade esclavagista, que são o fundamento da construção do país, saem do armário".."É grave mas compete-nos ser a alternativa", diz Talíria. "É assustador", desabafa Mariana. "Mas o Rio já resistiu a tudo e seguirá resistindo." Para Julia Michaels, "talvez o retrocesso seja o princípio da mudança e a sociedade, devagar, mude o que precisa ser mudado".

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