2 anos e um escândalo depois, Simone Biles volta aos palcos mundiais

Norte-americana é a grande figura dos Mundiais de ginástica artística que se estão a disputar em Doha, no Qatar. Na véspera de entrar em prova, foi hospitalizada devido a um cálculo renal, mas logo garantiu que está pronta a competir
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As proezas da pequena Simone Biles nos Jogos Olímpicos do Rio têm pouco mais de dois anos e as atuações que a projetaram como uma das grandes estrelas do desporto mundial nesse verão de 2016 ainda estarão presentes na memória coletiva. Mas, de lá para cá, o nome de Biles (e de toda a ginástica nos Estados Unidos) esteve envolvido não em proezas competitivas mas sim como uma das vítimas do maior escândalo de abuso sexual que alguma vez atingiu o desporto, com mais de 150 ginastas norte-americanas a denunciarem um predador que o sistema da modalidade tinha protegido anos a fio.

Simone Biles reforçou a causa das ginastas que denunciaram o médico Larry Nassar quando, em janeiro deste ano, assumiu publicamente que também ela tinha sido vítima de abuso pelo homem que durante anos a fio teve como missão cuidar das atletas da federação de ginástica dos EUA (e que atualmente cumpre uma pena de até 150 anos de prisão). A multicampeã olímpica do Rio - onde ganhou quatro medalhas de ouro, igualando um recorde olímpico entre as ginastas - deu o rosto mais mediático a uma luta que desmembrou todo o edifício da ginástica norte-americana, arrastando também treinadores e dirigentes de uma federação que continua, nesta altura, sem presidente, na sequência do escândalo Nassar.

Steve Penny, o presidente que liderou a USA Gymnastics durante 12 anos, entre 2005 e 2017, foi forçado a resignar e está acusado de encobrimento e tentativa de destruição de provas no caso. Entretanto, a federação já teve outros dois presidentes interinos que acabaram também por cair - a última, há pouco mais de uma semana, foi Mary Bono, uma ex-ginasta e antiga congressista que se demitiu apenas quatro dias depois de ser nomeada interinamente.

Simone Biles desempenhou um papel ativo na demissão de Mary Bono, na sequência de críticas públicas da efémera presidente à escolha da Nike em promover o ex-jogador de futebol americano Collin Kaepernick como rosto da sua nova campanha. "Não se preocupem. Não precisamos de uma presidente mais inteligente nem de sponsors nem nada disso", escreveu a campeã olímpica no Twitter, numa crítica carregada de ironia, sobre a posição de Bono, que viu também outras ginastas vítimas de Nassar lembrarem de imediato a ligação da dirigente à firma de advogados contratada pela federação de ginástica para tentar minimizar os efeitos do escândalo.

Dois anos sem competir

Enquanto se assumia como um rosto do empoderamento feminino e da causa das ginastas americanas, Simone Biles esteve mais de um ano afastada dos treinos, uma decisão que a própria já tinha anunciado na ressaca do êxito conquistado no Rio de Janeiro. E só voltou a competir neste último verão, quase dois anos depois do Jogos 2016.

Com pouco mais de meio ano de treinos, a pequena (1,42 metros) gigante da ginástica mundial dominou os campeonatos nacionais dos EUA, em agosto, e tornou-se a primeira atleta de sempre a conquistar cinco títulos de campeã norte-americana em all-around [conjunto dos diferentes aparelhos]. Agora, a expectativa está toda em redor do seu regresso aos palcos internacionais, com os fãs à espera de voltar a celebrar o sorriso da ginasta do Ohio nos Mundiais de ginástica artística que arrancam nesta quinta-feira em Doha, no Qatar.

O principal objetivo de Simone Biles neste que será o primeiro campeonato do mundo da modalidade organizado no Médio Oriente é o de chegar a um inédito quarto título em all-around, que lhe permita isolar-se no topo histórico que partilha nesta altura com a russa Svetlana Khorkina (ressalve-se que no tempo de outras ginastas lendárias, como Larisa Latynina, Vera Caslavska e Nadia Comaneci, os Mundiais disputavam-se apenas de quatro em quatro anos). No total, Simone tem 14 medalhas conquistadas em Mundiais, dez delas de ouro (com duas de prata e outras duas de bronze). Menos uma do que a romena Gina Gogean (15) e a seis da russa Khorkina (20).

O novo e inédito exercício de salto

O favoritismo que rodeia Simone Biles foi ainda mais reforçado recentemente com a notícia de que a norte-americana, atualmente com 21 anos, introduziu nas suas rotinas um exercício que nunca nenhuma mulher tinha conseguido fazer antes: inspirada na manobra Cheng, que ganhou o nome da chinesa Cheng Fei e é considerada uma das mais difíceis da ginástica artística, Biles acrescentou ainda meia pirueta ao grau de dificuldade e realizou-a com êxito no aparelho de salto nas provas de seleção dos EUA, há duas semanas. Se o repetir em Doha, deixará seguramente mais esse legado na ginástica artística: um novo exercício batizado com o seu nome.

Para Biles, contudo, um dos testes mais importantes é aquele que é representado pelo aparelho das barras assimétricas, o único dos quatro aparelhos da ginástica artística feminina no qual a norte-americana nunca ganhou uma medalha internacional. "Gostava muito de chegar à final nas barras. Sempre admirei as ginastas que conseguem medalhas aí, porque as barras assimétricas exigem tanto, mental e fisicamente", referiu a campeã olímpica, que nos últimos Nacionais dos EUA conseguiu, pela primeira vez, ser campeã também nesse aparelho - aliás, foi a primeira ginasta desde Dominique Dawes, em 1994, a ganhar todos os quatro eventos individuais e ainda a primeira não adolescente desde 1971 a ganhar o título all-around.

Uma sucessão de proezas históricas que contribuem para aumentar a lenda de uma ginasta que tem já lugar definitivo entre as melhores da história e que no Qatar pode ainda superar o recorde de 12 ouros em Mundiais de ginástica artística, na posse do bielorrusso Vitaly Scherbo.

A lenda masculina Uchimura e sete portugueses

A competição arranca nesta quinta-feira com as qualificações masculinas, onde é aguardado também com expectativa o regresso do japonês Kohei Uchimura, recordista de títulos all-around em campeonatos do mundo, com seis, numa série interrompida no ano passado devido a lesão. O japonês, de 29 anos, é o grande nome da competição masculina. As qualificações femininas começam apenas no sábado. As finais individuais e coletivas têm lugar ao longo da próxima semana, até dia 3 de novembro.

Portugal vai apresentar uma seleção de sete atletas, destacando-se a estreia de Petrix Barbosa, que até 2016 representou o Brasil. "Optou por adquirir a nacionalidade portuguesa e lutar junto dos nossos ginastas para que a ginástica artística masculina nacional evolua e chegue a patamares cada vez mais elevados. Para esta primeira participação internacional ao serviço da seleção nacional o ginasta tem grandes objetivos, alcançar pelo menos uma final", refere a federação.

A equipa masculina inclui ainda Bernardo Almeida, também do Lisboa Ginásio Clube, e Simão Almeida, do Ginásio Clube Português. Beatriz Dias e Mariana Pitrez (Acro Clube da Maia), Filipa Martins (Sport Club do Porto) e Mariana Marianito (Lisboa Ginásio Clube) compõem a equipa feminina.

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