Fernando Rosas: "A democracia foi conquistada na revolução"

25 novembro. De repente, há uma parte importante da sociedade portuguesa que considera os acontecimentos político-militares que ditaram o fim dos setores de esquerda do MFA fundamentais para serem assinalados. Para esses, a democracia é filha direta do 25 de Novembro, e foi nessa data que se derrotaram as tentações totalitárias da revolução. Esta mudança de leitura histórica - durante quase 49 anos, o 25 de Novembro esteve em sossego -, está na ordem do dia. Sinal dos tempos e do reforço eleitoral de uma direita mais extremada. Para discutir isso, falámos com Jaime Nogueira Pinto (<a href="https://www.dn.pt/i/17395459.html" target="_blank"><strong>LER AQUI</strong></a>) e Fernando Rosas, que curiosamente estiveram do mesmo lado nesse dia do ano de 1975.
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Fernando Rosas mudou de posição: a 25 de Novembro de 1975 ele era dirigente do MRPP e estava alinhado no contra-golpe que triunfou nesse dia. Hoje estaria no outro lado da barricada. Acha, no entanto, que o 25 Novembro foi uma espécie de suspensão da revolução acordada, a hipótese de uma revolução socialista acabou, de facto, na urnas.

Onde é que estava no dia 25 de Novembro de 1975?
Eu era militante do MRPP e estávamos a imprimir, semi-clandestinamente, o Luta Popular, por causa do estado de sítio, e acabou por sair apesar disso. Até porque o MRPP tinha uma posição de apoio ao contra golpe do 25 de Novembro.

O MRPP foi um das duas organizações do campo maoista que apoiaram os vencedores do 25 de Novembro, a outra foi a AOC (Aliança Operária e Camponesa) organização de frente do Partido Comunista de Portugal (Marxista Leninista) (PC de P (ML)) [partido em que o principal dirigente, Eduíno Vilar, foi responsável ideológico do PSD de Carlos Mota Pinto]. O MRPP encontrava-se no campo no novembrismo contra, para simplificar, o campo do gonçalvismo a quem se atribui a intensão de se fazer um golpe de Estado. O MRPP apoiava o contragolpe novembrista que estava preparado há muito tempo. Eu hoje não tenho a mesma posição sobre os acontecimentos.

Mas na altura tinha.
Por estranho que lhe possa parecer, eu acho que Álvaro Cunhal analisa bem a situação, quando escreve A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril. É verdade que há, a partir de certa altura, uma fuga para a frente no campo da revolução socialista. Uma fuga para a frente que aumenta à medida que vai perdendo terreno. Isso começa com as eleições para a Assembleia Constituinte, que iniciam a sobreposição da legitimidade das urnas sobre a legitimidade revolucionária; continua na Assembleia de Tancos, com grandes mudanças na correlação de forças no seio do Movimento das Forças Armadas (MFA). O partido comunista vai interpretando bem esta situação, convoca o Comité Central (CC) para Alhandra. A célebre reunião, nessa altura secreta. Em que a política que sai daquele CC, tal como está nos documentos disponíveis, é que era preciso aguentar, tentar recuperar pontos de diálogo com o MFA e até com o PS, mas a lógica que se desencadeia, no terrenos, é a contrária e é uma lógica de fuga para a frente, que acaba por se transformar num ensaio frustrado de movimento militar, a partir do SDCI [Serviço de Deteção e Controlo de Informação], que forma uma espécie de comando, porque Otelo, embora pressionado para tomar o comando das operações, não quer e vai-se embora. O que sai dali é uma espécie de movimento militar frustrado: ocupa-se a televisão, a Emissora Nacional, alguns pontos da cidade de Lisboa. Os outros estão à espera desse deslize e há o contragolpe de Novembro.

Pode-se dizer, como muitos afirmam hoje, que é um golpe ligado ao PCP? Há muitas unidades militares com gente próxima dos comunistas que não chegam a sair, que é o caso dos fuzileiros.
Sim, uma característica dessa movimentação é que ela não é consensual dentro do campo político que eu chamo genericamente: o campo da revolução socialista. O PCP não está a favor dela, claramente. O Cunhal não é homem de tomada do poder de baixo para cima, tomada do Palácio de Inverno. A estratégia à Boris Ponomarev [destacado dirigente soviético] não é essa, é mais de cima para baixo. Creio que a direção do PCP avalia a situação e percebe que vai caminhar para uma situação de guerra civil catastrófica. E portanto retira, desmobiliza os militantes que tinha convocado para as sedes. Os próprios oficiais da marinha próximos do PCP não saem. Os fuzileiros eram a única força que podiam fazer face aos comandos não avançam. No debate historiográfico que há, eu não acho que o 25 de Novembro seja uma contrarrevolução. A contrarrevolução é uma coisa sangrenta. Historicamente são partidos proibidos, sindicatos dissolvidos, prisões e execuções em massa. No 25 de Novembro não é isso que se passa. Não é uma contrarrevolução. O que se passa é que, a sugestão é do próprio Álvaro Cunhal e eu estou de acordo com ela, há uma contenção pactuada e acordada do processo revolucionário. O Cunhal chama-lhe uma contenção objetiva, porque quer dar a entender que o PCP não negociou o processo. Mas hoje sabe-se que o próprio Álvaro Cunhal se encontrou com Melo Antunes. Há uma contenção entre o PCP, como força principal do campo das revoluções socialistas, e um setor do documento dos nove, que era a ala esquerda das forças que estão do outro lado. Isso traduz-se nas célebres declarações que os comunistas são muito importantes para a revolução. O PCP continua no VI Governo Provisório e a Constituição que é fruto desse equilíbrio é um documento que ainda estabelece todas as principais conquistas da revolução: reforma agrária, nacionalizações, as comissões de trabalhadores, o controle operário, isso está tudo estabelecido na Constituição. Ela resulta de um equilíbrio político e ideológico, em que a revolução teve força para aguentar a democracia e ainda algumas das conquistas mais avançadas do processo revolucionário. De onde vem a contrarrevolução? Se considerarmos que a contrarrevolução é o regresso das velhas classes dominantes e das novas que, entretanto vão emergindo, e que impõem a destruição da reforma agrária, as privatizações em massa, a mudança da legislação laboral, tudo isso desembocando na década do cavaquismo retumbante. De onde vem? A contrarrevolução vem das urnas e elas dão uma maioria ao PS que se vai aliando ao PSD nas questões fundamentais.

Embora com um crescimento significativo do PCP até 1980.
Há o crescimento dos partido comunista, mas há sobretudo uma resistência social intensa às tentativas de reverter as conquistas do processo revolucionário, resistência que é muito forte até ao início do cavaquismo. Quando se começa a privatizar tudo, liquidar totalmente a reforma agrária. Essa liquidação não foi um processo de um dia para outro: durou vários anos, porque ainda se estavam a fazer ocupações em 1976. É um processo de estrangulamento violento, em que a certa altura entra a GNR. A contrarrevolução não vem do 25 de Novembro, ela vem das urnas. O 25 de Novembro trás, na minha opinião, duas coisas muito importantes para a alteração da correlação de forças: primeiro, estabelece o consenso que a legitimidade das urnas prevalece sobre a legitimidade revolucionária; segundo lugar, acaba com o MFA. Dissolve a parte das forças armadas que funcionou como proteção armada do processo revolucionário, fazendo regressar as forças armadas à sua função essencial de espinha dorsal da violência do Estado, que tinha desaparecido no 25 de Abril. Isso porque como como a revolução foi feita por capitães e oficiais intermédios acaba por decapitar a hierarquia de comando.

Então pode-se dizer que o 25 de Novembro foi o garante da democracia pluralista sobre outras dinâmicas que não teriam o voto como base?
Não, porque ninguém no campo da revolução socialista admitia estabelecer uma ditadura de partido único sem direito de voto, esse programa não existiu em lado nenhuma a não ser na propaganda adversária. O problema é que o processo revolucionário estabeleceu uma dinâmica que foi travada por um golpe militar. O próprio processo revolucionário degenerou numa aventura militar da qual algumas forças tentaram desmarcar-se, provavelmente evitou-se a guerra civil. Segue-se uma contenção acordada e pactuada que salva a democracia , e que inicialmente salva, também, uma parte importante das conquistas da revolução, mas que ao introduzir a lógica da legitimidade eleitoral sobre a legitimidade revolucionária; e ao acabar com o MFA, muda a correlação de forças. Altera a relação de forças em relação a aquilo que era a dinâmica do processo revolucionário. Mesmo assim, há uma fortíssima resistência social, defendendo as conquistas que passaram a ser atacadas pelos governos constitucionais, com greves gerais e gigantescas manifestações. Essa resistência só é quebrada com o cavaquismo. Este é que é uma alteração profunda , é o neoliberalismo imposto pela força: fim total da reforma agrária, primeiras medidas de revisão das leis laborais. Do ponto de vista do processo revolucionário, o 25 de Novembro contém a revolução, mas essa revolução ainda tem força suficiente para garantir a democracia.

Qual é a razão da urgência de alguns setores exigirem uma comemoração do 25 de Novembro? Se ele fosse esse garante inquebrantável da liberdade, como essas pessoas dizem, ele não seria comemorado desde o dia seguinte?
Esta urgência de comemorar o 25 de Novembro não tem a ver propriamente com a comemoração. Os fascistas também comemoram o 28 de Maio e ninguém se incomoda com isso. Se a direita quiser comemorar o 25 de Novembro, comemora. O problema é muito mais importante é saber qual é a matriz da democracia? A democracia surge da revolução ou do contragolpe militar do novembros? Essa é que é a questão. A democracia tem uma essência contrarrevolucionária ou é um fruto da revolução? Existe democracia apesar da revolução ou existe democracia por causa da revolução? Essa é que é a questão que se coloca. No momento em que a extrema-direita emerge por toda a Europa e em muitos locais do mundo a estabelecer um novo discurso de legitimidade histórica, naturalmente vai inventar que a democracia surge do contragolpe do 25 de Novembro. Do meu ponto de vista o que é importante é tornar claro que a democracia em Portugal foi conquistada na rua e na revolução, não foi no 25 de Novembro.

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