O negócio da desinformação: empresa canadiana faz fake news em Portugal

Chama-se Vamos Lá Portugal e foi criado para apoiar a seleção de futebol. Depois foi comprado por uma empresa de publicidade canadiana. Publica conteúdos xenófobos, enganadores e muito populares. E ganha muito dinheiro com isso
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À porta estão paradas várias dezenas de bicicletas. A avenida é plana. No número 5455, num edifício de 11 andares, fica a sede e a "redação" do mais eficaz site de desinformação de Portugal. Mas a Avenue de Gaspé, onde o site é escrito e administrado, está no Mile-End, um bairro do centro de Montreal, a capital do Quebeque, no Canadá.

É, então, do outro lado do Atlântico, que alguém tecla num computador as "notícias" - assim lhes chamam - que pedem uma "revolta" em Portugal. Que dizem que Assunção Esteves, a ex-presidente da Assembleia da República, militante do PSD, "faz parte da quadrilha que governa Portugal" ("Quem pode, rouba!"). Há mais de 40 mil portugueses a viver em Montreal, mas este site - o Vamos Lá Portugal - não é um blogue de emigrantes descontentes com a pátria. Não é, sequer, uma página de denúncia política que faz uso da sua liberdade de expressão. É outra coisa.

Contactado por e-mail, o administrador do site recusa-se a responder a qualquer pergunta. Pede que não publiquemos o nome, por temer "questões de segurança" para si e para a sua família. Respeitamos o pedido, embora lembrando a importância das perguntas. Durante duas semanas, o DN enviou perguntas para a sede da empresa que administra o site. Não recebemos qualquer resposta.

Chama-se Fan-o-Web a editora canadiana que é dona do Vamos Lá Portugal. É uma empresa de websites, que se anuncia como o "sítio ideal para todo o tipo de anunciantes". A única, vaga, relação que tem com Portugal é o nome de um dos seus fundadores, Filipe Bastos, que com dois sócios canadianos concebeu esta plataforma de páginas. Em 2016, um grande grupo canadiano, chamado Attraction, comprou a Fan-o-Web. O Vamos Lá Portugal estava no pacote de títulos que mudaram de mãos.

Os 900 mil seguidores portugueses do site talvez não saibam, mas a Attraction é liderada por um bem-sucedido empresário canadiano chamado Richard Speer que é descrito no site da empresa como tendo "as qualidades inegáveis dos grandes líderes agregadores". Já foi distinguido como jovem empresário do ano no Quebeque (em 2013). As perguntas que lhe enviámos, há duas semanas, sobre a razão de ser do site de desinformação de que é dono, ficaram sem resposta.

Xenofobia e "fraldas sujas"

Hoje, o Vamos Lá Portugal é apenas uma das muitas páginas onde o grupo canadiano fatura publicidade. Nesta semana, depois da tragédia de Sabrosa, onde uma família morreu - possivelmente por intoxicação - foi publicado um texto no site pedindo "revolta". Diz assim: "Não eram imigrantes, não tiveram direito a casa e 18 meses de salário que quem trabalha não consegue ganhar (...). Eram portugueses, falavam português, esse é o defeito."

As mentiras são a constante, ali - dos 18 meses de salário ao resto. Mas a xenofobia vem de uma cidade improvavelmente longínqua - onde os emigrantes portugueses dispensariam um raciocínio simplista e errado, como o que o Vamos Lá Portugal aplica à tragédia de Sabrosa.

A página anuncia "notícias" mas não as faz. Tem partes de textos copiadas de outros jornais, de outros sites do mesmo género, e muitos conteúdos inclassificáveis. Como este: "Adolescentes estão a usar pensos higiénicos para se drogar! Alguns também usam fraldas sujas." Ou este: "Achado científico encontrou a relação entre a duração da vida de pessoas que são expostas aos gases dos seus parceiros."

Só no Facebook tem páginas específicas para animais, gastronomia e "notícias" destas. A sua audiência é maior do que os votos somados do PCP e do BE. Dito de outra forma: os consumidores da desinformação desta página em concreto são um quinto dos votantes habituais em Portugal.

Quanto ganham em publicidade?

Isso explica, em parte, a razão de ser deste site canadiano. Estas mentiras são populares. Há milhares de pessoas a visitar o site, dezenas de milhares a partilhar a desinformação, centenas de milhares a visitar as páginas nas redes sociais.

Outros sites da Fan-o-Web já foram acusados de publicar desinformação no Canadá e em França. Em julho, o jornal francês Libération classificou como falsa uma notícia do principal site do grupo canadiano, o Ayoye, que garantia que a cerveja estaria em vias de esgotar em França. No ano passado, esse mesmo site foi acusado pela imprensa candiana (Journal Metro) de publicar histórias conspirativas e títulos falsos sobre os atentados do 11 de Setembro nos EUA.

O Vamos Lá Portugal reproduz muita da desinformação publicada no Ayoye (as páginas são graficamente iguais). Como esta: "Uma nova droga faz apodrecer os corpos das pessoas que a consomem." As fotos usadas para ilustrar a história (que é, em si, duvidosa) são quase todas de situações que nada têm que ver com a descrita na falsa notícia - de gangrenas e lesões cutâneas.

O resultado deste estranho mundo "viral" é um negócio lucrativo. O DN procurou saber quanto ganha a Fan-o-Web com a desinformação do Vamos Lá Portugal. No último mês, segundo dados da plataforma Similar Web, há mais de sete mil visitantes diários do site. Calculada com base nesse número de visitantes, a publicidade paga pelo Google ascende a milhares de euros mensais. A estimativa é feita tendo em conta um valor de 2,12 euros por CPM (Cost Per Thousand, custo por mil, o indicador que calcula o preço de um anúncio visto por mil pessoas). Segundo o site de análise Cutestat, o Vamos Lá Portugal vale mais de 200 mil euros e tem um rendimento mensal publicitário superior a nove mil euros.

O papel do Google e do Facebook

Basta abrir a página e constatar isso mesmo. Há cinco espaços publicitários, geridos pelo Google, em cada página da secção de "notícias" deste site. Os anúncios variam, como é normal, de pessoa para pessoa. Podem ser cadeias de hotéis, livrarias online, o que quer que o Google saiba que cada um de nós costuma comprar online.

É assim que se explica este novo negócio em expansão: a publicidade direcionada. O Google ou o Facebook têm informações precisas sobre os nossos gostos, hábitos e crenças. Sabem o que lemos, que tipo de histórias nos interessam, o que compramos, onde e como. Toda essa informação foi-lhes dada, com consentimento, por muitos milhões de pessoas. Isso permite que estas empresas construam um novo modelo de venda de anúncios. Este é um mercado gigante - só o Google pagou mais de 12 mil milhões de euros de publicidade - mas quase sem regulação.

Com o conhecimento que tem de cada um de nós, o Google pode garantir aos anunciantes que vai vender a sua publicidade em todo o lado, às pessoas certas. Nos jornais impressos, na rádio e na TV, o mecanismo é bem diferente. Os anunciantes pagam publicidade acreditando que aquele meio chega às pessoas que espera convencer. Há outra diferença, ainda maior: quando anunciam num jornal, as empresas conhecem o seu estatuto, as suas normas. Estão a comprar publicidade num órgão que tem regras e uma utilidade social. Quando delegam nos agregadores essa escolha, o critério é bem diferente.

Fonte oficial do Google explicou ao DN que existem regras para avaliar quais os sites que podem, ou não, receber contratos publicitários: "As nossas políticas de edição definem onde os anúncios do Google podem ser colocados. Não fazemos comentários sobre sites individuais, mas impomos essas políticas com vigor e periodicamente avaliamos os sites para garantir a conformidade. Também encorajamos as pessoas a nos informarem quando virem sites sobre os quais suspeitam que possam estar a violar as nossas políticas."

No ano passado, o Google afirma ter bloqueado receitas publicitárias a dois milhões de páginas, por mês. Os números são impressionantes:
320 mil editores foram retirados da rede publicitária do Google, em 2017, por violação das regras; 90 mil sites foram colocados numa "lista negra", e o mesmo aconteceu a 700 mil apps de telemóvel.

Mas a desinformação continua a crescer. Páginas como o Vamos Lá Portugal são concebidas para serem "virais". Isso explica-se facilmente: segundo o último relatório do Obercom, mais de 60% dos portugueses consomem informação nas redes sociais. E esta relação entre empresas publicitárias que dominam o acesso à informação e páginas de desinformação que prosperam graças a essa publicidade tornou-se um labirinto moderno.

Na resposta enviada ao DN, o Google explica o que tem feito para combater a desinformação: "Num contexto mais alargado, estamos profundamente comprometidos em garantir notícias e informação online de qualidade - é por isso que estamos constantemente a aperfeiçoar o nosso motor de busca para fornecer aos utilizadores resultados de fontes credíveis, e é também por isso que estamos a construir um futuro mais forte para as notícias através do Google News Initiative e estamos a cortar o financiamento aos sites que violam as nossas políticas de publicidade."

Mas isso pode ser insuficiente. Num artigo publicado na Motherboard, a investigadora Nathalie Maréchal aponta um risco: "Tudo se desmoronou com a publicidade direcionada, que roubou o dinheiro do jornalismo e o usou para sustentar plataformas cuja lógica não é educar, informar ou responsabilizar os poderosos, mas manter as pessoas 'engajadas'. Essa lógica de 'engajamento' é motivada pela necessidade dupla de agregar mais dados e mostrar mais anúncios, e manifesta-se por algoritmos que valorizam a popularidade em detrimento da qualidade. Em menos de 20 anos, o Silicon Valley substituiu as regras editoriais por medidas matemáticas de popularidade, desestabilizou os sistemas democráticos de freios e contrapesos prejudicando o Quarto Poder e martelou mais um prego no caixão da privacidade."

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