No Largo da Anunciada, junto à ervanária centenária, ficava um antigo convento. Foi lá que há muitos séculos rebentou o enorme escândalo. Meteu freiras e padres, até santos de renome, inquisidores e monarcas, chegou aos ouvidos do Papa. Camilo dedicou-lhe um livro, A Freira Que Fazia Chagas, Agustina escreveu A Monja de Lisboa, e a história, hoje esquecida, conta-se em breves linhas:.No ano da graça de 1563, uma menina deu entrada no Convento da Anunciada. Tinha então doze primaveras puríssimas, e era de nobre estirpe. Seu pai fora embaixador na corte de Carlos V, entre outras missões diplomáticas, e por isso D. João III o fez senhor das saboarias de Torres Vedras, Soure e Pombal. Um irmão da menina morreu em Alcácer-Quibir, outro partiu para combater na Índia e nunca mais voltou, outro bateu-se na defesa de Mazagão, outro ainda foi soldado no Oriente e capitão de Malaca. Maria de Meneses, assim se chamava a moça, ficara órfã novita, e tomou hábito religioso com o nome de Maria da Visitação. Desde cedo surpreendeu suas mestras pelo trato recolhido, pela humildade e pela singeleza do porte, pelo descuido de si, pela brandura dos gestos, virtudes que lhe granjearam vertiginosa ascensão na hierarquia conventual. Em 1582, ainda jovem, foi feita prioresa do Mosteiro da Anunciada. Não muito depois, apareceram-lhe ferimentos na cabeça, tal qual as chagas de Cristo, a quem a monja tratava maritalmente por "Divino Esposo". Na manhã de 7 de Março de 1584, outro extraordinário sucesso: Maria da Visitação acordou estigmatizada, com as mãos em sangue e as costas também. Espantou-se o reino todo ante tal prodígio, de que houve notícia na Europa inteira. O rei Felipe II e o Papa Gregório XII receberam relatos circunstanciados do que então se passava em Lisboa, e dos milagres e das curas que a freira da Anunciada ia distribuindo à farta pelos muitos crentes que a procuravam, gente vinda de longe, inclusive do estrangeiro. Entre as freiras do convento, todavia, houve quem desconfiasse. Instaurado o competente processo, foi chamado o grande frei Luís de Granada, que, apesar de quase cego, garantiu a veracidade de tudo quanto se operara no corpo miraculado de Maria da Visitação. Pouco depois, Sixto Fabri de Luca, o geral dos dominicanos, veio a Lisboa e, sem se anunciar, irrompeu na Anunciada. Com o maior respeito, pediu à monja que lhe mostrasse as chagas da cabeça. De seguida, observou-lhe as costas, onde notou uma ferida larga e funda, que não sangrava por naquele dia ser uma quarta-feira. Descalçou-se a freira, mostrou os pés, também chagados, e na manhã seguinte Sixto Fabri regressou ao convento para novo exame às costas, que desta feita sangravam - e muito. Faltava a vistoria das mãos. Ele quis lavar-lhas com um pedaço de sabão preto que trouxera propositadamente para o efeito, ela desatou aos gritos, num pranto tremendo, e pretextou dores intensas. Sixto, então, abreviou o exame, atestando a veracidade de tudo quanto presenciara. Ainda assim, e à cautela, ordenou que a freira fosse reavaliada por uma junta de três sacerdotes de reconhecida virtude e não menor sabedoria. Realizada dias depois, a inspecção de frei Luís de Granada, frei Juan de Las Cuevas e frei Gaspar d"Aveiro corroborou o testemunho da estigmatizada, que assim pôde manter-se alegremente em modo místico. Com a advertência, porém, de que não deveria fazer propaganda aos seus milagres e, menos ainda, intrometer-se nos melindrosos assuntos políticos da união de Portugal e Espanha, tendo a obrigação de venerar Filipe II como rei legítimo e indiscutível de toda a Península. Não se sabe como nem porquê, Maria da Visitação desobedeceu. Tomou o partido do prior do Crato, instou o monarca espanhol a devolver a coroa aos Braganças, e apresentou-se ao povo como imagem viva da pátria lusitana, com cinco chagas no corpo, tantas quantas as que ornavam as armas de Portugal. Começou aí sua desgraça. Enfurecido, Filipe II pressionou o cardeal Alberto de Áustria, vice-rei e inquisidor-mor de Portugal, a reabrir o processo da monja de Lisboa. Em 9 de Agosto de 1588, iniciaram-se os interrogatórios às irmãzinhas da Anunciada. Uma delas descaiu-se, disse que um dia espreitara Maria da Visitação no recato da sua cela, a avivar com um pincel as cores das suas falsas feridas. Chamada a miraculada, garantiu esta que Cristo se manifestava nela, e há muitos anos. E que até houve uma ocasião em que o sacrário da igreja se abriu e dele saiu uma hóstia que, voando pelos ares, foi parar direitinha à sua boca, decerto aberta de espanto. Afiançou ainda que, às vezes, tinha tais e tão transcendentes arroubos que rodopiava pelo ar, inconsciente, e só voltava a si quando regressava a terra firme. Os inquisidores, claro está, não se comoveram com as acrobacias da monja e, no dia 14 de Outubro de 1588, por volta da uma da tarde, esfregaram-lhe as costas chagadas com sabão almiscarado. Aos poucos, as feridas desapareceram. Intrigante caso, sem dúvida, mas em que "uma breve ensaboadura o podia tirar a limpo", como disse Frei Luís de Sousa, contemporâneo dos acontecimentos..Desmascarada, Maria da Visitação confessou que fizera os golpes na cabeça com a ponta de uma navalha, que pintara de vermelho as costas, os pés e as mãos, e que só não contara estes horríveis pecados ao seu confessor pois estava esperançosa no perdão do Infinito Misericordioso. A grande questão do processo consistiu em saber se a freira, para tais maquinações, tivera ou não pacto com o diabo, quiçá por via carnal, o que, não tendo sido provado, a salvou da fogueira (para isso também contribuiu, como é óbvio, a condição social da nobre senhora, mas adiante.) A sentença foi proferida com aparato pelo próprio inquisidor-geral, o arquiduque Alberto de Áustria, tendo ao seu lado um plantel de peso, onde avultavam o arcebispo de Lisboa, o bispo da Guarda, o arcebispo de Braga e o provincial português da Ordem dos Pregadores. Maria da Visitação foi condenada a prisão perpétua, com a cominação de que só poderia sair da cela para ouvir missa, e que nos primeiros cinco anos de pena não deveria falar com quem quer que fosse, excepto por alturas da Páscoa, do Pentecostes e do Natal. Perdeu, obviamente, todos os cargos que tinha, os privilégios de antiguidade, a contagem do tempo de serviço, as diuturnidades e os abonos, e até o direito a usar o hábito negro. Recolheu ao Mosteiro de Nossa Senhora da Graça de Abrantes, onde morreu aureolada de santidade, diz quem viu..via GIPHY.À distância, é difícil alcançar o impacto tremendo que este caso teve na época, em Portugal e em toda a Europa. A patranha da Anunciada lançou o descrédito sobre todo o mundo católico, tornando-o um alvo fácil dos protestantes, que logo aproveitaram o escândalo para denegrir Roma e o Papa, os bispos e a Madre Igreja. Em Londres, editaram-se opúsculos e panfletos inflamados, denunciando a intrujice. Quem saiu pior da história foi frei Luís de Granada, um dos mais respeitados teólogos do seu tempo, autor de um best-seller piedoso, o Guia de Pecadores, que durante anos a fio protegera e confiara em Maria da Visitação, fora seu director espiritual e confessor, e que avalizara os seus milagres. Tentaram desculpá-lo, alegando que o asceta estava velhote e já mal conseguia ver, que de seu natural era crédulo e bondoso, sempre pronto a acreditar nos seus semelhantes. Mas, a par de frei Luís, outros se chamuscaram, começando por Sixto Fabri, geral dos dominicanos, passando pelo Santo Ofício de Lisboa (que, com base em pareceres médicos, certificara nada menos do que catorze milagres), e acabando nas pobres freirinhas da Anunciada. Salvaram-se na fotografia os que sempre desconfiaram da monja de Lisboa: o padre Juan de Yepes y Álvarez, mais tarde canonizado como São João da Cruz; a carmelita descalça Ana de San Bartolomé, companheira de Santa Teresa de Jesus; a poderosa - e insuportável - condessa de Féria; a nobre Margarida de São Paulo, filha do conde de Linhares, uma das freiras que nunca acreditaram na colega e que, talvez por isso, acabou por lhe suceder na chefia do convento..Hoje, poucos se lembram do escândalo da Anunciada, mas ele mostra bem que a religião tem sempre a perder quando se aventura nos tortuosos caminhos da política. Foi isso que condenou a monja de Lisboa e precipitou a sua queda. Se acaso Soror Maria da Visitação não se tivesse metido nos meandros da união ibérica, se não tivesse participado em comícios a favor do prior do Crato e da causa da independência, a sua vida seria certamente mais tranquila, a produzir milagres para quem deles precisasse. Talvez até a tivessem feito santa ou beata, venerada nos altares, pois são às centenas - mais de trezentos! - os estigmatizados consagrados pela Igreja, a esmagadora maioria dos quais do sexo feminino..Há dias, a governadora do Alabama assinou uma lei inenarrável, que pune com pena de prisão até 99 anos os médicos que praticarem abortos, incluindo em casos de violação e de incesto (!). Essa lei é produto da campanha iniciada há vários anos pela direita religiosa dos Estados Unidos, onde preponderam movimentos evangélicos ultraconservadores, os mesmos que apoiam Jair Bolsonaro e a sua ministra da Família, a pastora Damares Alves, que em Março de 2018 proclamou "é hora de a Igreja governar". À semelhança da monja de Lisboa, também a ministra Damares garante ter visto Cristo, mas em versão tropical: o Salvador apareceu-lhe no alto de uma goiabeira, quando ela estava prestes a suicidar-se numa crise de adolescência. Crítica do evolucionismo, Damares diz-se mestre em Educação e em Direito Constitucional, mas nenhum desses títulos lhe foi atribuído por uma instituição de ensino, sendo, segundo ela, graus académicos "autor-reconhecidos" por via bíblica, já que em Efésios 4:11 se afirma que "Ele designou alguns para apóstolos (...) e outros para pastores e mestres". Lindo, não?.O excepcional documentário Reversing Roe, de 2018, disponível na Netflix, descreve à minúcia a aracnídea estratégia dos evangélicos da América, que em poucas décadas conseguiram fazer que os republicanos mudassem radicalmente de posição em matéria de aborto. Radicalizados uns, respondem os outros, e no estado de Nova Iorque, no passado Janeiro, foi aprovada legislação que liberaliza ao limite a interrupção voluntária de gravidez. Com este extremar de posições, é impossível encontrar uma solução consensual e equilibrada que, com lucidez e bom senso, seja capaz de conciliar os interesses em conflito na tragédia do aborto. Quem rejubila, claro, é o incendiário Donald J. Trump, que vive como peixe na água no meio destes confrontos, que só o favorecem. Mas quando, e se, as coisas acalmarem, no final todos ficarão a perder: as mulheres do Alabama, os bebés de Nova Iorque - e as igrejas e credos que se envolveram nas guerrilhas da política, tal qual Maria da Visitação, a monja da Anunciada. Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.