O fim de Freud (3.ª e última parte – Londres)
Os jornais tinham anunciado entusiasticamente a sua chegada, Sigmund Freud e a psicanálise eram muito populares em Inglaterra. Para ele, que não desdenhava a fama, aquela segunda-feira, 6 de Junho de 1938, era um dia auspicioso. Na véspera, ao fazer a travessia do Canal, num ferry que o levara de França até Dover, tivera um sonho estranho, como sempre. Nesse sonho, o local onde desembarcava não era Dover, mas Pevensey, e, quando contou o episódio ao seu filho, teve de lhe explicar que Pevensey foi a terra onde Guilherme da Normandia desembarcou em 1066 para conquistar a Inglaterra.
Sigmund Freud não chegava a Londres como conquistador, longe disso. O seu propósito era fugir dos nazis para morrer em liberdade, to die in freedom, como confessou numa carta ao seu filho. Minado por um cancro há vários anos, sabia que lhe restava pouco tempo de vida. Ainda assim, não perdera a esperança de terminar o manuscrito do seu livro sobre Moisés e o monoteísmo.
A caminho da nova morada, fez questão de ir mostrando à mulher os pontos turísticos da cidade que conhecera na juventude. Passaram pelo Palácio de Buckingham, pelas Houses of Parliament, atravessaram Piccadilly Circus, Regent Street, por aí fora. Era feriado nesse dia, Martha e Sigmund puderam ver as enormes filas de automóveis que se encaminhavam em direcção à costa. Londres era então a cidade mais populosa do mundo, prestes a chegar aos oito milhões e 200 mil habitantes em 1939, e nem a iminência da guerra conseguira impor o confinamento. Nos cinemas, tal era a afluência de público, a Branca de Neve de Walt Disney passava em sessões contínuas, das onze da manhã às onze da noite. No dia em que Freud chegou a Londres, o zoo de Regent"s Park teve mais de 61 mil visitantes, enquanto nas imediações se realizava um desfile anual de animais de tiro, 574 cavalos em parada. E, no parque, entre os relvados, ópera ao ar livre, Così Fan Tutte.
Quem andasse pelas ruas e pelos jardins de Londres nunca diria que, por esses dias, os deputados do Parlamento tinham discutido o que aconteceria à cidade se fosse alvo de um bombardeamento aéreo alemão. Os especialistas, que também se enganam, asseguravam que, só nos primeiros 14 dias de ataque, cairiam cem mil toneladas de bombas sobre a cidade. Segundo os seus cálculos, que também se enganam, cada tonelada provocaria 50 mortes, o que daria um resultado final aterrador, com milhares ou milhões de vítimas (na realidade, os nazis nunca chegaram a lançar cem mil toneladas de bombas e estas nunca provocaram o número de baixas que os peritos previam).
Os Freud pararam à porta da sua nova casa, o n.º 39 de Elsworthy Road, que o filho Ernst arrendara temporariamente enquanto não encontrassem uma morada definitiva. Ao contrário da residência de Viena, a nova residência era estreita e desenvolvia-se na vertical, em vários pisos, o que não era muito prático para acomodar um doente terminal e os seus cuidadores. Apesar disso, Freud adorou a casa e, sobretudo, o jardim frondoso. Ao fim de meses confinado no n.º 19 da Berggasse, sem poder sair à rua com pânico dos ataques dos nazis, o psicanalista respirava o ar da liberdade e, enquanto caminhava no seu novo jardim, confessou que estava tentado a gritar "Heil Hitler!" a plenos pulmões.
O interior da residência encontrava-se repleto de ramos de flores enviados por admiradores e na mesa de entrada acumulavam-se as cartas a pedir autógrafos e entrevistas, até missivas de pintores que lhe queriam fazer o retrato. Freud, que nunca desdenhara a fama, e que sempre se sentira um injustiçado no seu país natal, rejubilava com tantas manifestações de carinho, que incluíam, para seu supremo deleite, várias ofertas de antiguidades feitas por gente que sabia que se ele vira temporariamente privado da sua colecção, retida na Áustria pela burocracia nazi e pela cupidez dos seus esbirros.
Dias depois, na sexta-feira 10 de Junho, o pai da psicanálise saiu de casa pela primeira vez. Para quê?, perguntamos. Para ir visitar o seu chow-chow, obrigado a permanecer em quarentena num canil de Ladbroke Grove, cujo director, claro, diria à imprensa nunca ter visto tanta alegria nos olhos de um cão como quando Lün avistou Sigmund Freud, como sempre vestido num pesado fato escuro de três peças, apesar do calor que então se fazia sentir na cidade.
A 23 de Junho, uma consagração retumbante. Os três secretários da Royal Society dirigiram-se à casa de Freud para que este assinasse o livro de honra daquela instituição, a academia científica mais antiga do mundo. Só o rei tinha a prerrogativa de assinar o livro da Royal Society no seu palácio, mas, tendo Freud alegado que estava demasiado doente para se dirigir à sede da academia, ninguém se atreveu a questionar como tivera saúde para, dias antes, ir visitar o seu chow-chow a um canil de quarentena. Assinou por baixo dos nomes de Isaac Newton e de Charles Darwin, duas figuras que sempre admirara, mas como em Inglaterra assinar apenas com o apelido era um privilégio reservado aos lordes, Sigmund Schlomo Freud teve, pela primeira vez em 40 anos, de escrever o nome completo.
Em meados de Julho, o n.º 39 de Elsworthy Road teve uma visita inesperada: na companhia de Stefan Zweig, Salvador Dalí concretizava o sonho, ou a fantasia mitómana, de conhecer Sigmund Freud, após várias tentativas frustradas para se avistar com ele em Viena. Uma vez, refere o pintor nas suas memórias, entrara em transe enquanto comia caracóis em França, ao ver na parede do restaurante um retrato de Freud. Deu então um grito sonoro, provavelmente assustando todos os presentes, pois, segundo ele, tinha descoberto o segredo da morfologia do cérebro do autor de Totem e Tabu. O crânio de Freud, de acordo com Dalí, assemelhava-se à casca de um caracol e, no interior, o cérebro tinha a forma de espiral para poder ser extraído com o auxílio de uma agulha... Ao chegar a Elsworthy Road, o pintor veria uma bicicleta encostada a um muro, em cima da qual passeava tranquilamente um caracol, como é óbvio. Todavia, nenhum destes delírios parece ter despertado o interesse do anfitrião, que praticamente não disse uma palavra enquanto Zweig e Dalí permaneceram no seu escritório. Freud fora vitimado há pouco por mais um ataque de surdez temporária, motivada por uma infecção, mas Dalí não o sabia e, por isso, falou torrencialmente dos seus próprios escritos acerca da paranóia. O psicanalista manteve-se impassível a olhar para ele durante longos minutos, talvez mesmo horas, após o que se limitou a olhar para o amigo Stefan Zweig e dizer, sem uma exaltação na voz: "Nunca vi um exemplo tão acabado de um espanhol. Que fanático!"
O pior, contudo, estava para vir. Quando trocaram algumas palavras sobre o surrealismo, Freud observou: "Na pintura clássica, procuro o subconsciente; nos quadros surrealistas, o consciente." Como refere Mark Edmundson no fascinante estudo The Death of Sigmund Freud, essa foi talvez a maneira elegante que Freud escolheu para dizer a Dalí que os seus quadros, que pareciam ser imensamente espontâneos e autênticos, vindos das profundezas da mente, eram, afinal, extremamente intelectualizados e, digamos assim, racionais e esquemáticos. Dalí parece ter acusado o toque e, ao recordar aquele diálogo, disse que aquela afirmação de Freud fora a sentença de morte do surrealismo. Paz à sua alma.
O psicanalista, contudo, parecia apreciar visitas como esta, que lhe amenizavam os dias, agora que o manuscrito do livro sobre Moisés estava concluído e que Freud vivia atormentando pela doença e pelo espectro do nacional-socialismo. Quatro das suas irmãs tinham ficado na Áustria, Sigmund receava pelo seu destino. Em Agosto, teve a feliz notícia de que o dinheiro que lhes deixara tinha chegado às suas mãos e que a amiga de sempre, a princesa Bonaparte, continuava a envidar esforços para resgatá-las das garras dos nazis. Marie Bonaparte chegou a propor, inclusivamente, que fosse comprada uma parcela do sul da Califórnia para alojar todos os judeus perseguidos por Hitler, e afirmou estar disposta a contribuir vultuosamente para esse projecto. Era tarde, porém. Dentro em breve, seis milhões de seres humanos, entre os quais as irmãs de Sigmund Freud, seriam devorados nos campos de concentração.
Em Londres, também ele se debatia com um inimigo devorador. Sigmund Freud convivia há longos anos com um cancro diagnosticado em finais de 1923. Eram tão íntimos que lhe chamava "o meu velho amigo". Agora, o mal regressara em força. Em finais de Agosto, o seu médico pessoal, Max Schur, ponderou a hipótese de uma nova intervenção, mais uma, e para o efeito conseguiu que da Áustria viesse Hans Pichler, o cirurgião que antes o operara. Juntos, decidiram operá-lo uma vez mais, o que obrigou Pichler a fazer uma incisão profunda no lábio superior e no nariz do paciente para poder alcançar a região afectada pelo tumor. Os exames vieram a mostrar que o tecido removido era pré-canceroso, o que levou Schur e alguns médicos ingleses a interrogarem-se se aquela intervenção fora mesmo necessária. É difícil sabê-lo, evidentemente. O que se sabe é que a operação foi particularmente brutal, deixando o paciente num estado de grande prostração durante várias semanas. Incapaz de trabalhar, de dormir, de falar convenientemente e até de fumar, Freud escreveu a Marie Bonaparte que aquela tinha sido a mais dolorosa das operações que sofrera desde 1923.
No final de Setembro, uma novidade animadora. Os Freud mudaram-se para a casa do n.º 20 de Maresfield Garden, que para sempre ficará ligada à sua memória (é hoje o Museu Freud de Londres, autointitulado "A Casa da Psicanálise"). Com oito quartos de dormir, três casas de banho, duas garagens, jardins à frente e atrás da casa e até um campo de ténis, a nova residência era, nas palavras dele, "demasiado bonita para nós". Endividara-se para a adquirir, fizera um empréstimo avultado no Barclays Bank, e, apesar de achar a casa formidável e "incomparavelmente melhor" do que o n.º 19 da Berggasse (actualmente o Museu Freud de Viena), começava a ficar preocupado pela dívida que contraíra: uma das razões por que se empenhou tão a fundo para ver publicada a edição americana de Moisés e o Monoteísmo teve justamente a ver com a necessidade desesperada de ganhar dinheiro para pagar ao banco. Freud, que sempre fora um homem frugal e avaro, comprazia-se agora com os confortos da nova casa - gás canalizado, iluminação eléctrica, telefone, água quente e aquecimento -, e dizia para a família que num piscar de olhos tinham passado "da pobreza para o pão branco".
Faltava, porém, o essencial, a biblioteca, o mobiliário, a colecção de antiguidades. Ao deixar Viena, pagara todos os impostos e todas as taxas possíveis, preenchera as centenas de papéis que os nazis lhe exigiram, mas o facto é que os contentores com nos seus bens tardavam a atravessar a Mancha. Acabariam por chegar, ao menos em parte (um carregamento com 800 volumes da sua biblioteca apareceria, sabe-se lá como, no porto de Nova Iorque...). Freud podia recriar agora o ambiente que o tornara famoso: o celebérrimo divã, que uma paciente, a senhora Benvenisti, lhe oferecera em 1891; as figurinhas de terracota, todas elas, incluindo a estatueta de Atena, a predilecta, que Marie Bonaparte conseguira trazer clandestinamente de Viena até Paris; o retrato de Charcot, o eminente médico francês que considerava ser o seu mestre, as fotografias da sua trindade erótica - Marie Bonaparte, Lou Andreas-Salomé e Yvette Guilbert, a cantora parisiense diversas vezes imortalizada por Toulouse-Lautrec, que não deixaria de o visitar em Maresfield Garden, quando foi em tournée a Londres, já em 1939.
Em Janeiro desse ano, Freud teria uma das visitas mais estranhas das muitas que recebeu em casa. Leonard e Virginia Woolf decidiram ir até Maresfield Garden, Freud ofereceu-lhes chá e, a ela, um narciso, algo que pode ter sido mais do que uma escolha fortuita, tendo em conta que, para ele, as mulheres tinham uma tendência quase natural e inata para o narcisismo, ao passo que ela defendia acerrimamente que eram os homens os mais afectados por essa tara. Leonard ficou extasiado com as boas maneiras do anfitrião, com a ambiência do seu escritório ("quase um museu"), com a lucidez cortante das suas palavras. Ela, pelo contrário, achou-o um velho acabado e decrépito. Durante o chá, pegaram-se. O tema, inevitável, foi Hitler e os nazis. Virginia defendeu que a guerra iminente se devia à forma humilhante como a Alemanha fora tratada em Versalhes, especialmente pela França. Freud discordou, zangou-se, disse-lhe que, se acaso os alemães tivessem ganho a Grande Guerra, o mundo estaria pior ainda. Um e outro não eram personalidades dispostas a ceder e Leonard, sob fogo cruzado, não chamou a si o papel de árbitro desse match de (maus) génios.
Apesar destes momentos de distração e lazer, as dores agravavam-se, o cancro avançava de dia para dia. Em finais de Fevereiro, Marie Bonaparte conseguiu trazer de Paris, para o observar, o médico que lhe salvara o cão, também ele afectado por um tumor maligno. As radiografias do doutor Lacassagne, assim se chamava o clínico, revelavam que o cancro se expandira terrivelmente, sem que Freud pudesse ser submetido a uma nova intervenção cirúrgica. Começaram, então, os horríveis tratamentos com raios X, que o fizeram perder a barba da face direita e sangrar frequentemente da boca, que lhe provocaram dores de cabeça inauditas. Ainda assim, Freud recusava quaisquer analgésicos, com receio que lhe toldassem o intelecto, a sua derradeira morada, a mais poderosa das suas armas. Aceitava, quando muito, ingerir uma aspirina nas fases mais críticas.
A 6 de Maio de 1939, dia do seu 83.º aniversário, desceu um pouco ao jardim, para estar com a família, com um par de amigos, e, claro, com o chow-chow Lün. Max Schur, o médico que Marie Bonaparte lhe recomendara, e que o acompanhava desde 1929, viajara durante uma temporada aos Estados Unidos, para ver se poderia fixar-se aí com a família e exercer a prática da medicina. Ao regressar a Londres, no início de Julho, encontrou o seu doente incrivelmente magro e apático, muito distante do vigor intelectual de outrora. Em tempos, Freud fizera-o prometer que, quando chegasse a sua hora, Schur não o deixaria sofrer desnecessariamente.
Ainda assim, ao debelar um ataque de asma cardíaca, o médico salvou-o quando ele já não se interessava em ser salvo. Depois disso, afirmaria Max Schur, as coisas entraram rapidamente em plano inclinado. A carne gangrenou, abriu-se uma cavidade imensa no seu rosto, o odor a putrefacção invadiu o quarto, a cama teve de ser coberta por uma rede mosquiteira para repelir as moscas. Até o cão - ou, melhor, a cadela, Lün, a chow-chow - passou a deitar-se num lugar mais afastado do quarto, tentando evitar o cheiro nauseabundo que exalava do seu dono.
Setembro trouxe o fim, de Freud e não só. Por uma estranha coincidência, Sigmund entrou em irreversível agonia na mesma altura em que as tropas de Hitler invadiam a Polónia, acabando de vez com quaisquer esperanças de paz e concórdia. O fim de Freud anunciou-se no dia 19, quando Ernest Jones, o fiel discípulo, foi despedir-se dele - incapaz de falar, o mestre abriu os olhos e acenou-lhe com a mão, em sinal de adeus. Dois dias depois, Max Schur acercou-se da cama, Sigmund Freud recordou-lhe a promessa feita de que não o deixaria sofrer inutilmente. O médico assentiu com a cabeça, sem uma palavra, ele agradeceu-lhe o gesto, "Ich danke Ihnen", e pediu-lhe que falasse com Anna, a filha bem-amada. Disse ao médico que, se Anna concordasse que era altura de pôr termo àquilo, se avançasse sem hesitações. Schur conversou com Anna e esta, devastada, concordou com os desejos do pai. Nesse mesmo dia, Schur ministrou a Freud três centigramas de morfina, uma dose muito superior à que deveria usar se o único objectivo fosse aliviar as dores do paciente. Repetiu a dose e, no dia seguinte, 22 de Setembro, deu-lhe uma terceira injecção. À meia-noite de 23, um sábado, dia do Yom Kippur, Sigmund Schlomo Freud continuava vivo.
Lá fora, nas ruas de Londres, trabalhava-se sem descanso a construir abrigos para os ataques aéreos iminentes. Nos edifícios, as portas e as entradas eram protegidas por sacos de areia e as janelas cobertas com fitas de papel ou com folhas de jornal. Nos céus, erguiam-se balões de protecção contra os alemães, os aviões de reconhecimento cruzavam o horizonte em busca de um inimigo que não tardaria a vir. Nas praças, cobriam-se com tijolos ou removiam-se as estátuas dos ilustres, hoje vandalizadas por quem nunca conheceu a guerra - e nada fez pela paz. Os cães, apavorados com tanto barulho, encheram a noite da cidade com uivos lancinantes. Terá Lün uivado à passagem do seu dono?
De cancro e morfina, Sigmund Freud morreu às três da madrugada de 23 de Setembro de 1939.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.