Lisboetas Vindos de Fora: Zahrah, a senhora do castelo
Ainda morava em Alfama quando conheci a rapariga reservada que movia os braços lentamente, como uma praticante de tai chi chuan. Trazia o miúdo com mais ou menos a mesma idade do meu para gastar as energias no improvável parque infantil do bairro, cercado por vielas e becos, um oásis para os pais à beira de um ataque de nervos durante as férias escolares. Entre o choro de uma criança com o joelho ou cotovelo magoados, contou-me das traduções do espanhol para o inglês para o Havana Times, um jornal online sediado na Nicarágua, com a missão de disseminar a opinião dos cubanos que vivem na Ilha, sem restrição nem censuras.
"Contra ou a favor do regime?", quis saber.
"Neutro. Defende qualquer open-minded writing from Cuba", resumiu.
Há aqui uma boa história, pensei. Entretanto, um dos putos, o meu ou o dela, já não me lembro, clamava imperiosamente por uma sanita e a conversa foi adiada.
Quatro anos depois, o convite do DN para a série de perfis dos Lisboetas Vindos de Fora era a oportunidade de retomar o que o impertinente cocó de um miúdo interrompera. O testemunho de uma representante da relação mais antiga mantida entre Portugal e um outro país era um bom início para a galeria dos rostos que formam o mosaico de etnias, culturas e experiências da cidade. Apesar da sensação de se estar a ouvir a mesma história, percebi que nem os ingleses nem Lisboa são os mesmos, pois como ensinara o príncipe de O Leopardo, é preciso mudar para que tudo permaneça como está, inclusive os encantos (e alguns desencantos).
Neste período, Zahrah foi detetada pelo radar das redes sociais e descobri-la, para além de tradutora das reflexões de dissidentes e defensores do regime cubano, modelo profissional, a desfilar nas páginas das revistas, o que talvez explique como flutuava diáfana por entre os escorregas e baloiços do parque infantil. E foi assim, caminhando no catwalk invisível no Largo do Intendente que surgiu, numa manhã de verão invulgarmente nublada e ventosa.
Zahrah Latif, nascida em Londres, neta de paquistaneses, 32 anos e, como se trata de uma modelo, 1, 68 metros e 43 quilos, pediu um descafeinado, que a empregada de mesa, com os ombros, disse não ter. Foi entre curtos goles de sumo, portanto, que adicionou valências ao currículo de tradutora e modelo. Formada em Humanidades pela University College London, foi fotógrafa, voluntária em comunidades carenciadas do Rio de Janeiro - o que explica o português com sotaque brasileiro - além de emprestar a voz para voiceovers em publicidade.
Os olhos negros brilham mais intensamente, porém, quando fala da experiência como ativista das causas feministas, integrada à União de Mulheres Alternativa e Resposta, a UMAR, uma tradicional associação de luta e proteção das mulheres.
"Multitarefa...", sugeri, sobre o variado leque profissional.
"Como todas as mulheres", devolveu, atenta à existência da possibilidade de um conteúdo sexista no comentário aparentemente banal.
Mais do que uma inquietação, a versão "multitarefa" de Zahrah reflete a opção por viver numa Lisboa de rendas altas e salários baixos. Desde que deixou de dividir o apartamento e as despesas com o ex-companheiro, o pai de Nilo, o miúdo feliz que corria pelo parque em Alfama, caiu na armadilha do terceiro turno. "Não há saída, a mulher sozinha precisa de dois empregos para pagar as contas", diz. Com a exceção do trabalho na UMAR, os demais são como freelancer, o que não garante uma renda fixa.
Cuidadosa com as palavras, identifica em Lisboa uma certa tendência à estagnação profissional, com pessoas acomodadas, reféns de um emprego e de um salário assim-assim, contando os dias para a reforma. "Não há novas vagas e as poucas que surgem são para os amigos dos amigos", resume, sobre a existência e a exigência de uma "cunha" para conseguir trabalho.
E se depender da sua rede de amigos, a cunha vai demorar. Apesar de considerar os "portugueses simpáticos", Zahrah ainda os acha excessivamente "reservados. As poucas amigas são as mães de alguns colegas do filho e o atual círculo de luta feminista".
"Como assim, um inglês achar alguém reservado?", provoquei.
"É por isso que saí da Inglaterra e não tenho a intenção de voltar", justifica.
Antes de Lisboa, Zahrah passou pelo Rio e Havana. Esteve também em Espanha, onde conheceu o ex-companheiro, um músico de Valladolid. Viviam em La Cala de Finestrad, o famoso balneário, até ao nascimento do pequeno Nilo, que pedia um sítio com mais estrutura, hospitais, creches e, quem sabe, um trabalho estável. Lisboa era a solução. O plano seria passar seis meses e depois, com o bebé mais crescido, seguir para a França.
Entretanto, houve a brisa tépida, o azul intenso, dez meses de sol e lá se vão sete anos.
Zahrah diz sentir-se "à vontade" em Lisboa, uma cidade diferente de quando chegou, em 2013, menos turística, mais pacata e barata. "Ainda sim, é um sítio bonito, com boa qualidade de vida e bastante seguro", ressalta. Apesar da vida corrida, permite-se alguns instantes de contemplação diária, quase sempre após deixar o filho na Voz do Operário. "Paro uns minutos no miradouro da Graça e percebo como sou privilegiada. Se estivesse em Londres, a paisagem seria certamente horrível, com um céu cinza."
Um céu cinza como o daquela nublada manhã de verão em Lisboa.
Um vento irritante insistia em nos expulsar da esplanada e foi entre redemoinhos de poeira a arrastarem papéis e uma ou outra máscara descartável relegados ao passeio que nos despedimos, como há quatro anos, infligidos pela força da natureza. Zahrah improvisou um véu com um lenço, cobriu a cabeça, protegeu os olhos, sorriu e partiu, a flutuar, levada pela ventania de volta ao topo de Lisboa, onde a tradutora, a modelo, a ativista feminista, a mãe e a mulher seguirá a sua vida lisboeta, vizinha de São Jorge, senhora do castelo.
Escritor, jornalista e Lisboeta Vindo de Fora