A causa animal, o drama humano
Metade dos portugueses que estão desempregados está a enfrentar o mais difícil momento da economia sem receber um cêntimo de prestações sociais. Em profunda pobreza, portanto. Quase dois milhões de portugueses vivem com menos de 550 euros por mês e a estes somam-se muitos outros que, mesmo trabalhando, não conseguem pagar todas as despesas básicas, manter a casa quente ou comer carne ou peixe três vezes por semana.
Em nome da contenção orçamental, num ano em que a inflação roubou mais de um salário a uma população já a acumular perda de poder de compra há anos, o governo cortou a meio o aumento devido aos pensionistas deste país, dando aos mais de 3,5 milhões de reformados, muitos deles a viver sem condições dignas, cerca de 4% a mais, em vez dos 8% a que teriam direito para enfrentar este ano dramático; e privando-os permanente desse reforço.
Os professores têm as carreiras estagnadas há décadas e continuam sujeitos a um sistema de colocações injusto e desumano. O serviço de saúde degrada-se todos os dias, potenciando a falta de cuidados e até a morte de quem não tem um seguro que lhe abra portas alternativas. Os pais não têm creches para acolher os filhos. As imensas falhas na rede de apoio aos mais frágeis condena-os à solidão e à degradação para lá dos limites da humanidade.
Centenas de mulheres continuam a ser vítimas de violência doméstica e o sistema que as devia proteger permite que os agressores mantenham a sua liberdade e prossigam a vida normal enquanto elas são desviadas das suas casas, da sua família, das suas rotinas. A justiça tarda, é inacessível à maioria dos portugueses e revela-se demasiadas vezes injusta e incapaz da sua função repositiva. O governo acumula casos que corroem as bases da ética e diluem as fronteiras da legalidade, pondo em causa as próprias instituições.
Nada disto faz mexer uma sobrancelha, a tudo o país assiste do sofá, quando se dá ao trabalho de interromper a série da moda. Nenhuma causa, nenhum ataque à dignidade humana desperta solidariedade e sentido cívico.
O que leva os portugueses à rua? "Justiça para animais, queremos mais!" Assim gritavam os muitos milhares que se mobilizaram contra a eventual inconstitucionalidade da lei que penaliza quem gratuitamente maltrata animais. A multidão que se indigna contra uma evidente injustiça, mas que é ensurdecedoramente indiferente a todas as outras, as que vitimam os homens, as mulheres, os velhinhos e as crianças. A turba que se revolta perante a mera possibilidade de o bem-estar animal ser beliscado, mas não perde um segundo quando é a humanidade, todos os dias violentada, a vítima. A mancha que não desmobiliza para impedir que quem comete crimes contra animais saia impune, mas aceita tácita e pacificamente todas as injustiças a que estão sujeitos os seus pais e avós, os seus vizinhos, os desconhecidos cujas causas são tão justas quanto ignoradas.
É o retrato de uma sociedade que deixou de ser capaz de graduar princípios, que se esqueceu de como ser solidária ou simplesmente perdeu a capacidade de se preocupar com o seu semelhante e com a causa humana.