Para lá de Trump

O <em>impeachment</em>, sendo direcionado a Trump, pode ter vários efeitos colaterais na saúde da democracia americana. Congresso, partidos e políticas públicas estão todos direta e indiretamente ligados ao julgamento no Senado. Vale a pena explorarmos como.
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O Senado americano iniciou o processo de impeachment a Donald Trump. Sendo o primeiro a um presidente que concorre à reeleição no mesmo ano em que o processo decorre, há um outro dado que acelera ao lado mas que em nada lhe é estranho: as primárias no partido democrata. A sua relação com o impeachment é íntima. Por um lado, a gestão do processo assentou, desde o início, no cálculo democrata sobre o impacto eleitoral após uma previsível absolvição de Trump. A escolha, acertada, foi não ceder à tática e defender a Constituição e a transparência total dos factos apurados ou por apurar. Por outro lado, o impeachment tem uma ligação íntima com a corrida democrata porque os factos que lhe dão origem relacionam um abuso de poder do presidente sobre um Estado terceiro a troco de informações sobre o principal oponente (a ver pelas sondagens) às eleições de novembro, Joe Biden. Por isto é importante tentarmos perceber como se cruzam todos estes elementos.

Em primeiro lugar, importa referir que um julgamento sem aprofundamento dos factos através de audições a testemunhas-chave ao processo está ferido de alcance e, como já alguns afirmam, de constitucionalidade. O veto republicano a novas audições mostra bem como o partido deixou de ser um elemento estrutural da república constitucional americana, para ser um movimento de culto ao presidente Trump, que o tem praticamente todo no bolso. Digo isto porque há pelo menos três vozes na bancada disponíveis para aprovar essas audições, sendo certo que seria precisa mais uma para a regra passar. Só o facto de estarmos num limbo em que apenas uma pequeníssima minoria de republicanos estão dispostos a defender um julgamento à altura da gravidade dos factos, dá para ilustrar o estado em que está o partido.

Nem o facto de John Bolton se ter voluntariado a testemunhar veio alterar a força do culto. Como se julga os factos sem que os senadores saibam todos os detalhes importantes a eles ligados? Como se aprova, sob juramento, um julgamento público sem que se possa ouvir todos os intervenientes do processo? Ninguém acautelou os danos reputacionais do Congresso, do sistema judicial e da democracia americana, com tudo isto a ser escrutinado mediaticamente ao segundo? Pode um julgamento com estas características, ainda para mais presidido por um juiz do Supremo, evitar danos colaterais à principal instituição jurídica do país?

Além de Bolton ou de Mick Mulvaney, chefe de gabinete de Trump, como se apura a verdade sem ouvir figuras intervenientes nos factos levantados na Câmara dos Representantes, como Robert Blair, membro do núcleo duro da Casa Branca, ou Michael Duffey, homem que sob ordem presidencial congelou a ajuda financeira à Ucrânia, hora e meia após o célebre telefonema entre Trump e Volodymyr Zelensky? É difícil acreditar na qualidade jurídica deste impeachment quando as regras são estas. Assim torna-se mais fácil reconhecer a evidência aritmética do desfecho no Senado e alguns dos seus impactos.

Quando Bill Clinton foi absolvido no Senado, em fevereiro de 1999, a sua popularidade disparou nos meses seguintes. A economia também crescia, mas o presidente estava a um ano de abandonar a Casa Branca e podia trabalhar para o legado. Hoje, se Trump for absolvido, com a economia globalmente de boa saúde, nada nos diz que não suba nos índices de aceitação popular. Aliás, à luz de sondagens da Gallup para os últimos quatro presidentes, exatamente nesta semana de janeiro dos respetivos anos de reeleição (Bill Clinton 1996, George W. Bush 2004, Barack Obama 2012, Donald Trump 2020), o atual é de longe quem tem a popularidade mais baixa e de forma sustentada. Precisa por isso de mais do que uma mera absolvição no Senado, provavelmente transformando o desfecho noutra luta ganha contra o sistema, mostrando que o culto está impenetrável, que os factos são frágeis, que o foco deve passar para as suspeições sobre a família Biden na Ucrânia.

Nessa altura do campeonato, poderemos estar em cima da super-terça-feira (4 de março, 14 primárias democratas em simultâneo), com Biden a sofrer todos os ataques de Trump e, admito, dos seus principais adversários internos, mortinhos por colá-lo às podridões do sistema. É também por essa altura que Mike Bloomberg entrará em força na campanha, podendo quebrar a plataforma de Biden e reabrir a corrida com Elizabeth Warren e Bernie Sanders. Nenhum deles tem menos de 70 anos nem garante a federalização da heterógena plataforma democrata que deu duas vitórias a Obama.

Tendemos a colocar todo o ónus das disfuncionalidades da democracia americana em Trump, mas o partido democrata teima em ser uma alternativa óbvia e ganhadora, mesmo contra um presidente profundamente odiado por metade do país. É preciso assumir isto: o partido nunca fez a paz necessária desde as primárias de 2008, feridas reabertas na corrida interna de 2016. E, nestes últimos quatro anos, em choque contínuo nunca refeito depois da fatídica noite de 8 de novembro de 2016, permaneceu abertamente dividido nas ideias, incapaz de forjar um programa convergente, uma mensagem galvanizadora ou gerar um núcleo de protagonistas políticos acima da suspeição e com o carisma necessário para fechar com estrondo a porta da Casa Branca a Donald Trump.

Um sistema que já não pode contar com o partido republicano, tem o democrata numa indefinição estratégica e assiste a um Congresso que não está disponível para apurar toda a verdade num impeachment presidencial pode então contar com o quê? A democracia na América é, felizmente, mais do que isto, mas pode ficar severamente afetada por essas três dinâmicas. Bem para lá de Trump.

Investigador universitário

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