O que nós pensamos que sabemos

John Wayne tinha medo de cavalos, Humphrey Bogart era um homem fino e o pianista de <em>Casablanca</em> não sabia tocar piano.
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Há tempos, alguns jornais e revistas brasileiros foram levados a erro pelas agências de notícias e anunciaram a aposentadoria de um cantor de rock dos anos 1950 chamado Little Richards. Little quem? Little Richards.

Pobre Little Richard. Sim, este é o seu nome ou, pelo menos, o pseudónimo que o consagrou. Aos 80 e tal anos, está tão esquecido que a imprensa já nem consegue escrever direito o seu nome - sendo o Richards que lhe sapecaram um eco do nome de um de seus primeiros copiadores, o hoje também quase octogenário Keith Richards, dos Rolling Stones. É verdade que, a rigor, Little Richard só existiu de 1955 a 1957. Mas, naqueles dois anos, lançou algumas das pedras fundamentais do género, como Tutti Frutti, Long Tall Sally e Good Golly Miss Molly. Sem ele, o rock'n'roll, que os negros americanos já faziam com outro nome, nunca teria chegado ao mercado branco. E é verdade também que, quando isto aconteceu, Little Richard e seus colegas negros, como Chuck Berry, Bo Diddley e Fats Domino, foram despachados para a zona fantasma e substituídos por seus clones brancos. Mas a suprema humilhação é descobrir que, com o tempo, nem o seu nome ficou para a posteridade.

Isto é só para mostrar que, se até uma celebridade como Little Richard perde o direito à própria identidade, o que sabemos nós de outras figuras do show business do passado? E o que dizer daquilo que pensamos que sabemos, mas, na vida real, é outra coisa? Na condição de jornalista e eventual biógrafo, aprendi a desconfiar das aparências e, no caso de artistas, a jamais acreditar que a vida deles se confunde com a sua obra. Mesmo assim, vivo tendo surpresas. Exemplos.

John Wayne, o maior cowboy do cinema, devia passar boa parte do ano no seu rancho no Texas, talvez criando cavalos, não? Não. Wayne não gostava de cavalos. Não gostava, não confiava e tinha medo deles. A sua ideia de férias não era a de encafuar-se em meio a vacas, mas vestir uma camisa de marinheiro, sair com o seu barco pela costa do México e passar semanas em alto-mar, enchendo a cara de tequila. E se, pelo facto de tê-lo visto como soldado ou oficial em inúmeros filmes de guerra, você acredita que ele foi um herói militar americano, engana-se. Wayne nunca vestiu uma farda na vida real - era muito jovem para a Primeira Guerra e, dizem, deu um jeito de escapar do serviço na Segunda.

E Humphrey Bogart, famoso pelos papéis de homens rudes, grosseiros e violentos? Devia ser assim na vida real, não? Não. Ao contrário, Bogart tinha de fazer o maior esforço para parecer grosso - porque era de origem finíssima. Seus pais vinham da velha aristocracia de Nova Iorque, e Humphrey (nome que soa meio maricas para os americanos comuns) foi criado para estudar em Yale, jogar ténis em clubes da elite e casar-se com uma milionária. Bem, se você viu Casablanca, sabe que ele não cumpriu os desígnios da sua família. E, por falar em Casablanca, o ator alemão Conrad Veidt, que no filme interpreta o assustador major Strasser, da Gestapo, era sempre escalado em papéis de nazi nos filmes ingleses e americanos - e era tão bom ator que deviam achá-lo nazi de verdade. Pobre Conrad Veidt. Na realidade, ele era ardentemente antinazi e, embora não fosse judeu, por repulsa ao regime, saiu da Alemanha mal Hitler tomou o poder. Tornou-se cidadão britânico e, assim que a luta começou, passou a dar quase todo o seu dinheiro para o esforço de guerra da Inglaterra. Pena ter morrido de enfarte, aos 50 anos, logo depois de completar Casablanca - não viveu para ver o nazismo derrotado.

Mas a melhor história envolvendo Casablanca é a de Dooley Wilson, o ator e cantor negro que interpreta o pianista Sam, aquele que toca As Time Goes by para Ingrid Bergman num dos momentos mais emocionantes da trama. Por causa do sucesso do filme, os nightclubs por toda parte nos Estados Unidos quiseram contratá-lo. E era sempre a mesma coisa: quando Dooley se apresentava para o trabalho, o gerente indicava-lhe o piano onde ele deveria sentar-se e tocar As Time Goes by. E ficavam muito espantados quando Dooley lhes dizia que não sabia tocar piano e fora dobrado no filme - no que era dispensado no ato.

As aparências enganam mesmo. Boris Karloff, especialista em papéis de monstro e astro de Frankenstein (1931), A Múmia (1932) e outros clássicos dos filmes de terror, era um dos homens mais amáveis e educados de Hollywood. No fim da vida, nos anos 1960, mudou-se para Nova Iorque e foi morar no lúgubre edifício Dakota, na Rua 72 Oeste - mais sinistro ainda depois que Roman Polanski o usou como cenário de A Semente do Diabo, em 1968, e seu morador John Lennon foi assassinado à sua porta em 1980. Pois Karloff, toda a véspera de Natal, andava silenciosamente pelos corredores do Dakota, carregando embrulhos misteriosos. Quem o visse poderia imaginar que ele estava arquitetando alguma monstruosidade. Mas não era nada disso. O querido Boris estava apenas deixando presentes na porta dos apartamentos das famílias que ele sabia que tinham filhos pequenos.

Lembra-se de Johnny Weissmuller, o maior Tarzan do cinema? Vivia passando por constrangimentos porque as pessoas que o encontravam pediam-lhe para dar o famoso grito de Tarzan, aquele que ressoava por toda a selva e alertava os animais que ele, o seu rei, estava chegando pelo próximo cipó. E Weissmuller tinha de mentir, alegando que estava afónico - não podia confessar que o grito não era dele, mas um mix de sons gravados em estúdio, que um ser humano jamais conseguiria produzir.

E, para minha surpresa, descobri que um dos três maiores garanhões de Hollywood nos anos 1930 e 40, ao lado de Clark Gable e Gary Cooper, foi... James Stewart. Ele mesmo: o tímido, inseguro, desajeitado (alto de mais, muito magro) e quase gago James Stewart. Até então, eu achava que ele podia ser um grande ator, mas devia ser um dos maiores défices de sex-appeal da história, um homem por quem nenhuma daquelas deusas do cinema poderia se interessar. E, de repente, James Stewart sai-me partindo corações. Para você ver como a gente pode se enganar.

E prova também que não entendo nada de cinema.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros livros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).

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