Manhattan do avesso, horas de discursos e reuniões, mas o mundo não vai mudar
No seu primeiro discurso perante os restantes líderes mundiais, no ano passado, Emmanuel Macron fez o contraponto a Donald Trump: à "América primeiro" do presidente dos EUA, a que correspondeu na prática à saída de organizações como a UNESCO ou de tratados comerciais e internacionais como o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, o francês retorquiu ao defender uma governação global ao serviço do desenvolvimento.
"Nós estamos irremediavelmente ligados uns aos outros num destino comum, hoje como amanhã", proferiu, tendo recebido um aplauso caloroso e loas da imprensa. Um ano depois, continuará Macron a ser a "derradeira esperança para os aliados dos EUA limitarem o carácter apocalíptico da natureza de Trump", como escreveu o The New York Times ?
Contra "os atores da desconstrução do multilateralismo", que "intensificam os ataques metódicos", o ministro dos Negócios Estrangeiros francês mostra-se otimista de que o seu país possa "juntar as potências da boa vontade", diz em entrevista ao Le Monde . Para Jean-Yves le Drian, há que "agir para restaurar um multilateralismo eficaz. Para salvar a essência do sistema em vigor desde o pós-guerra, é necessário reformar os grandes instrumentos à nossa disposição como as Nações Unidas ou a Organização Mundial do Comércio".
O ministro francês dá como exemplo de novos fóruns multilaterais o encontro sobre a paz em Paris (dia 11 de novembro) ou a cimeira One Planet, sobre o clima, que teve lugar no ano passado.
Neste mês, a presidência do Conselho de Segurança cabe aos Estados Unidos, pelo que Donald Trump terá um papel de maior relevância. Que espera Paris do presidente norte-americano? "[A não proliferação] é um grande ponto de acordo para a segurança do mundo, em todo o lado, seja na Coreia do Norte seja no Irão. Parece que a atitude americana difere entre a Coreia do Norte e o Irão, mas a não proliferação é para todos", considera Le Drian.
Uma fonte na sede da ONU, à AFP, garante não ter "ideia alguma" do que Donald Trump irá dizer ou fazer. Já a embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, avisou que "a soberania é uma prioridade acima de tudo", incluindo o multilateralismo. E deu como exemplo a saída de acordos como o de Paris ou as conversações para um pacto sobre migrações.
Espera-se que, a exemplo do ano passado com a Coreia do Norte, Trump ataque o regime do Irão, dispondo não só do discurso na assembleia geral mas também da reunião do Conselho de Segurança sobre não proliferação nuclear, a decorrer na quarta-feira.
Afastada está a hipótese de Trump se encontrar com o homólogo iraniano. Hassan Rouhani recusa sentar-se ao lado do norte-americano enquanto este não mudar de ideias quanto ao acordo nuclear de 2015. Já Rouhani tentará reforçar o apoio dos países europeus para salvar o pacto.
Vladimir Putin e Xi Jinping, presidentes da Rússia e da China, primam pela ausência. O venezuelano Nicolás Maduro, receoso de um ataque contra a sua integridade física, mantém a dúvida no ar. Ainda assim, são esperados mais de 130 chefes de Estado e de governo nesta semana em Nova Iorque para o maior momento diplomático do ano. No ano passado marcaram presença 114, pelo que o secretário-geral António Guterres se congratulou com a "prova eloquente da comunidade internacional nas Nações Unidas".
Por outro lado, o dirigente português mostrou-se preocupado com a ameaça do unilateralismo. "O multilateralismo está sob ataque de várias direções exatamente quando mais precisamos dele", disse na quinta-feira.
A Assembleia Geral da ONU é uma dor de cabeça para os nova-iorquinos. Uma dúzia de quarteirões ficam fechados ao trânsito, dezenas de outros têm acesso restrito para facilitar o movimento diplomático de cerca de 200 caravanas de carros oficiais. O dispositivo de segurança aperta a cada ano: nesta semana foram colocados 230 blocos de betão para impedir a hipótese de um ataque com veículos. A isso juntam-se centenas de polícias e de franco-atiradores espalhados pelos telhados e barcos no East River.
O tema da 73.ª sessão é sintomático da forma como a Organização das Nações Unidas quer ser vista, mas também de como é difícil falar a uma voz. "Fazer da ONU uma organização para todos", em francês; "Aproximar as Nações Unidas às pessoas", em espanhol; e "Tornar as Nações Unidas relevantes para todas as pessoas" não é exatamente o mesmo.
Presidida pela equatoriana María Fernanda Espinosa, a reunião anual começou na semana passada e tem uma agenda de 16 páginas. O momento alto, contudo, começa na terça-feira, com o discurso do secretário-geral, baseado no relatório das atividades da ONU.
Segue-se Michel Temer. Por tradição, o presidente (ou o representante) do Brasil ganhou esse estatuto porque o diplomata Oswaldo Aranha presidiu à assembleia geral de 1947 e porque, segundo reza a história, nas primeiras reuniões ninguém queria ser o primeiro a discursar e os brasileiros mostraram sempre vontade de fazê-lo, segundo contou o chefe de protocolo da ONU, Desmond Parker, à NPR.
Há quem considere que essa deferência resulta do papel importante de Aranha na aprovação do Estado de Israel, na referida assembleia; outros que é um prémio de consolação pelo facto de o Brasil não ter assento no Conselho de Segurança.
Como país anfitrião, reserva-se aos Estados Unidos o lugar seguinte. A partir daí, a ordem é complexa: reflete a precedência em ordem descendente, de chefes de Estado a diplomatas, "preferências e outros critérios como equilíbrio geográfico", explica o site da assembleia geral.
Além dos discursos do chamado debate geral - o período de discursos dos representantes dos Estados -, há uma profusão de encontros em paralelo. Sobre a Venezuela, os chefes da diplomacia de Argentina, Colômbia, Peru, Chile e Paraguai vão pedir ao Tribunal Penal Internacional para investigar os indícios de crimes contra a humanidade, reforçando o pedido do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos. Os vice-presidentes dos Estados Unidos, Mike Pence, e da Colômbia, Iván Duque, devem falar noutra reunião sobre a Venezuela, ou antes, sobre a migração em massa dos venezuelanos.
"Seria um erro pensar que esta reunião da assembleia geral tem como objetivo mudar o mundo", comenta um embaixador de um país com assento no Conselho de Segurança, à AFP.
A agenda de hoje também é digna de nota. No ano do centenário do nascimento de Nelson Mandela, é organizada uma cimeira da paz em sua honra. Além das intervenções de representantes de mais de 140 países e entidades - Portugal incluído -, o momento de maior simbolismo será o da inauguração de uma estátua de Nelson Mandela. No final deve ser adotada uma declaração para que os anos 2019-2028 sejam a "década de paz Nelson Mandela", tendo como inspiração o líder antiapartheid.
Noutro local do edifício, Donald Trump preside a uma reunião sobre o problema global das drogas. Espera-se também uma declaração com o aval de mais de 120 países. A NBC precisa que esta declaração não foi alvo de negociações - "um exemplo da diplomacia americana connosco ou contra nós", declarou a organização Harm Reduction Coalition.