As eleições do multilateralismo americano
Quando Donald Trump se tornou o candidato presidencial do Partido Republicano americano em 2016, muitos previram que ele reduziria o tom da sua retórica inflamada durante a campanha eleitoral contra Hillary Clinton, a fim de atrair eleitores moderados. Depois de Trump ter sido eleito sem ter mostrado um pingo da contenção esperada, muitos disseram que a presidência e os republicanos no Congresso o fariam adotar um tom mais digno.
Hoje, sabemos como essas previsões foram ingénuas. Uma vez eleito, Trump não se controlou; na verdade, tornou-se ainda mais imprudente e incendiário. A maior preocupação agora não é o estilo inalterado de Trump, mas o facto de o Partido Republicano e o governo dos EUA se terem moldado à sua imagem. Poucos republicanos ousam questioná-lo e, dentro do governo, Trump cercou-se de uma camarilha de yes-men, dispensando ou marginalizando os poucos que se opunham às suas ideias mais absurdas. Com a aproximação da eleição presidencial, vale a pena lembrar as muitas maneiras pelas quais Trump e o Partido Republicano abdicaram completamente de qualquer sentido de responsabilidade dos EUA para com o resto do mundo.
Para começar, Trump recorreu sistematicamente ao nacionalismo, refletido em slogans grosseiros como "A América primeiro" e "Tornar a América grande outra vez". Ele insultou todas as tentativas de cooperação global em nome de uma conceção anacrónica de soberania nacional. Perante a atual pandemia, Trump abraçou o chamado nacionalismo vacinal e recusa-se a participar da COVAX, uma iniciativa apoiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que procura garantir a distribuição equitativa de qualquer vacina contra a covid-19.
Repetidamente, Trump desacreditou as soluções multilaterais em favor de acordos bilaterais e ações unilaterais. O seu governo questionou muitos dos compromissos internacionais da América e até negou alguns deles, principalmente o acordo climático de Paris de 2015 e o acordo nuclear com o Irão (impondo, neste último caso, sanções secundárias injustas a países terceiros). Trump baseou a sua política externa essencialmente em golpes de teatro, como o assassínio do general iraniano Qassem Soleimani em janeiro de 2020 e o reconhecimento anterior de Jerusalém como a capital de Israel.
Trump deixou claro que vê as relações internacionais como um jogo de soma zero. Essa postura tem sustentado as suas políticas tarifárias e, especificamente, a sua "guerra comercial" com a China. Em 2018, tuitou que "quando um país [EUA] está a perder muitos milhares de milhões de dólares no comércio com praticamente todos os países com os quais faz negócios, as guerras comerciais são boas e fáceis de vencer". Além disso, Trump espera beneficiar pessoalmente da diplomacia dos EUA, como mostra o escândalo da Ucrânia que levou ao seu impeachment pela Câmara dos Representantes dos EUA em dezembro passado.
Finalmente, Trump mostrou um lado não liberal, desdenhando pesos e contrapesos institucionais e depreciando os meios de comunicação dos EUA por propagarem "notícias falsas" (uma pedra atirada para um telhado de vidro). A nível internacional, Trump apoiou uma série de líderes não liberais que, como ele, estão mais preocupados com a sua própria sobrevivência política do que com a saúde democrática dos seus países. Esses líderes não veem nenhuma utilidade para os direitos humanos, exceto quando os invocam seletivamente por motivos de interesse próprio.
Sob o mandato turbulento de Trump, os Estados Unidos renunciaram abertamente à tutela da "ordem liberal". Mas não nos devemos iludir pensando que uma vitória do seu adversário democrata, Joe Biden, significará um retorno imediato ao mundo de ontem. Apesar de todas as suas diferenças radicais, os programas dos candidatos também têm alguns elementos em comum.
Por exemplo, Biden defende que deve ser dado tratamento preferencial aos produtos americanos e se deve subsidiar as indústrias domésticas. O Partido Democrata também endureceu a sua postura em relação à China (embora continue menos agressivo do que Trump nessa questão) e enfatiza a conveniência de contar com aliados. Não importa quem vença a 3 de novembro, a batalha sino-americana pela supremacia tecnológica, inclusivamente na área da inteligência artificial, permanecerá acirrada.
Em todo o caso, seria um erro idealizar o passado e aspirar a reproduzi-lo. O mandato da América como a principal potência global teve pontos baixos, bem como de relevo, e os problemas estruturais do país existiam bem antes de Trump assumir o cargo (na verdade, alguns deles ajudam a explicar a sua eleição em 2016). O mesmo poderia ser dito das muitas tensões que atualmente afligem o sistema internacional.
Portanto, devemos deixar a nostalgia de lado e concentrar a nossa atenção em enfrentar o mundo de amanhã. A pandemia da covid-19 demonstrou claramente que a cooperação multilateral não é uma opção, mas uma obrigação, e ainda assim estamos a permitir que muitas organizações internacionais entrem em declínio à frente dos nossos olhos. Um ator vital como a OMS está a sofrer atualmente de uma preocupante falta de recursos, especialmente desde que Trump retirou o financiamento dos EUA. Enquanto isso, o Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio permanece paralisado porque Trump se recusa a permitir a nomeação de novos juízes para o seu Órgão de Recurso.
Assim como o mundo precisará de reformar essas instituições para as adaptar aos ambientes em que terão de navegar, também precisará de novas regulamentações globais para os desafios impostos pela inteligência artificial e outras tecnologias emergentes. E, é claro, devemos continuar a avançar com firmeza na luta contra as alterações climáticas. A China declarou recentemente a sua intenção de se tornar neutra em carbono até 2060, enquanto a Comissão Europeia, sob o comando da presidente Ursula von der Leyen, fez do Acordo Verde Europeu uma das suas principais prioridades. Esta é a linha que devemos seguir.
Muito está em jogo para os Estados Unidos e para o mundo a 3 de novembro. Embora um potencial governo Biden não resolvesse todos os problemas que iria herdar, permitiria aos EUA renovar compromissos abandonados, abordar os seus aliados ocidentais como verdadeiros parceiros e amigos e redescobrir uma política externa menos melodramática e mais racional. A reeleição de Trump, por outro lado, aprofundaria as tendências aqui descritas, ampliaria a rutura entre os EUA e a União Europeia e provavelmente até infligiria danos irreversíveis à cooperação internacional.
Qualquer que seja o resultado das eleições nos EUA, o mundo terá de gerir uma realidade simples e imutável da melhor maneira possível: nenhum país, por mais importante que seja, pode enfrentar sozinho os desafios globais que temos perante nós.
Javier Solana, ex-alto representante da UE para as Relações Exteriores e Política de Segurança, secretário-geral da NATO e ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, é presidente do EsadeGeo - Centro para a Economia Global e Geopolítica e membro ilustre da Brookings Institution.
© Project Syndicate, 2020.