Antropocentrismo à lagareiro

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Desde tempos imemoriais que membros da espécie humana adquirem um humilde e salutar sentido de perspectiva através da contemplação do mundo natural. Confrontados com esplendores diversos - o ciclo incessante das marés, a luminosidade dispersa do firmamento, as peregrinações em massa de aves migratórias -, a reacção adulta normal é pensar: "Quão insignificantes são todas estas coisas comparadas comigo!" E temos toda a razão. A galáxia mais espectacular é incapaz de escrever má poesia sobre si própria. A borboleta mais exuberante não consegue organizar fotografias suas em subpastas de "Os Meus Documentos". Quem inventou os vários significados da palavra "interessante" tem, por definição, muito mais interesse do que todas as coisas que lhe interessam. O resto da realidade tem imensa sorte em nos ter por perto, e nem sequer nos agradece (o agradecimento foi outra maravilhosa invenção nossa, tal como os pronomes pessoais e possessivos).

Um recente exemplar desta maneira correcta de encarar as coisas é o documentário My Octopus Teacher (O Polvo Professor, Netflix). O título evoca o tipo de banda desenhada que costuma ser importada do Japão em envelopes opacos, mas trata-se de uma designação literal do conteúdo: um ser humano decidiu ir ao mar aprender coisas com um polvo.

Os cefalópodes têm uma fulgurante carreira no nosso imaginário colectivo, mas a sua encarnação enquanto "inteligências inesperadas" é relativamente nova. Durante a primeira metade do seu percurso cultural, o polvo limitou-se a ocupar o cargo de monstruosidade. Há uma página famosa de um romance de Victor Hugo (Os Trabalhadores do Mar) em que o protagonista combate um polvo gigante numa gruta, e que consiste quase exclusivamente numa sucessão de metáforas extenuadas para descrever o aspecto daquela coisa horrível, simultaneamente sólida e líquida: "um vazio com patas", "uma máquina pneumática", "um chapéu-de-chuva enrolado", "um punho cerrado dentro de uma manga", etc.

Para lá de todo este potencial proto-lovecraftiano, o aspecto mais interessante do polvo é o seu compêndio de transgressões taxonómicas: tem três corações, come e defeca pelo mesmo orifício, e não só possui um cérebro muito mais desenvolvido do que todos os outros invertebrados, como dois terços dos seus neurónios nem sequer estão no cérebro - a mente do polvo é distribuída ao longo dos apêndices, numa rede descentralizada em que cada ponto tem autonomia. O biólogo holandês Frans de Waal compara o sistema nervoso dos cefalópodes à internet. (Imaginem cada braço de um polvo a tweetar sozinho, entregue às suas próprias ambições: fazer memes sobre feminismo, debater o politicamente correcto, afirmar que o VAR está a matar o futebol, etc.)

É esta curiosa criatura que My Octopus Teacher investiga. Começamos com uma introdução introspectiva sobre o autor, um documentarista sul-africano, que nos confessa uma recente crise existencial. Pressões familiares e profissionais diversas. Um Novembro húmido e chuvoso na sua alma. Chamem-lhe Craig Foster. "Passei dois anos infernais por causa da pressão... Não estava em condições de ser um bom pai para o meu filho... Não era capaz de ver uma câmara à minha frente", diz-nos, à frente de uma câmara. "Precisava de uma mudança radical", conclui.

Como qualquer pessoa razoável perante este conjunto de circunstâncias, Craig tomou a medida óbvia: um ano sabático, passado a fazer mergulho recreativo num sítio paradisíaco. (É um profundo mistério que tanta gente por esse mundo fora não adopte esta solução simples para problemas semelhantes.) Ao fim de algumas expedições a uma floresta de algas, Craig encontra um polvo e decide modular a sua terapia inicial: para ultrapassar definitivamente as pressões de fazer documentários, faz um documentário sobre o polvo.

O primeiro encontro não corre bem. O polvo - que a dada altura no seu percurso evolutivo deve ter começado a desconfiar que tinha um sabor delicioso - foge em pânico, no meio de esguichos de tinta. Mas, como um amante persistente, Craig regressa todos os dias. "É difícil de explicar, mas às vezes sentimos algo... e temos a certeza. E eu soube que havia algo de invulgar nesta criatura. Que ela era especial." (O polvo em questão, já agora, pertence à espécie chamada "polvo-comum".)

Ao minuto 17, Craig confessa-se surpreendido por ver tantos tubarões-pijama nas imediações, já que se trata de um dos maiores predadores naturais do polvo, juntamente com o alho, o azeite quente e a batata assada. O espectador pressente a possibilidade de o tubarão-pijama vir a desempenhar um papel relevante nos acontecimentos, e não se engana. (Em dramaturgia, esta técnica é informalmente conhecida como "o tubarão-pijama de Tchekhov".) Após um incidente de categoria humana (deixa cair uma das lentes), Craig volta a assustar o polvo, que desta vez abandona o seu abrigo habitual. Há um reencontro fortuito pouco depois ("Foi como reencontrar um amigo!"), mas as etapas seguintes do enredo já foram determinadas. Um dos tubarões-pijama persegue o polvo até ao seu novo e ineficaz abrigo e arranca-lhe um dos apêndices à dentada. O polvo - pálido, debilitado e temporariamente despromovido a heptápode -, recolhe-se num buraco a recuperar. O conjunto decepado de neurónios autónomos recolhe-se no aparelho digestivo do tubarão a reflectir sobre a brevidade da existência. A frase seguinte de Craig, com a sua hábil escolha de pronome, é a segunda melhor de todo o documentário. "Senti-me muito vulnerável naquele momento." E elabora: "De algum modo, o que lhe aconteceu a ela... também aconteceu a mim... Senti-me... psicologicamente... como se eu próprio tivesse sido desmembrado."

O polvo, evidentemente, recupera (o apêndice volta a crescer), e inclusive desembaraça-se muito melhor de um segundo ataque do tubarão-pijama, disfarçando-se com conchas e sacando uma boleia furtiva nas costas do predador. Craig rejubila: "Deu-me uma confiança imensa. Se ela conseguiu ultrapassar esta dificuldade, então eu também saberia ultrapassar as minhas. De um modo estranho, as nossas vidas eram reflexos uma da outra."

É uma demonstração magistral de como testar os limites do antropomorfismo e dar a volta pelo outro lado. O antropomorfismo, de resto, já não é pecado doutrinário de outrora nas ciências naturais. Frans de Waal cunhou o termo antroponegacionismo, para descrever o pecado oposto: a recusa militante em atribuir características humanas a animais, mesmo quando parece a explicação mais óbvia. Mas Craig soube recentrar a questão no único eixo que realmente interessa: a gente! Os polvos têm longevidades dramaticamente abreviadas. Depois de depositar os ovos, a fêmea torna-se senil e morre de fome. É o que acontece à co-protagonista do documentário, cujo cadáver serve finalmente de alimento para o persistente tubarão-pijama. A última imagem que vemos dela mostra um inegável ar de gratidão, em reconhecimento da coisa mais importante que lhe aconteceu na vida: atrair a atenção de um documentarista deprimido e ajudá-lo a ultrapassar as suas dificuldades. "Por vezes regresso ao abrigo", diz Craig, "e ainda sinto a presença dela... Claro que sinto saudades...". Um longo silêncio. Suspiros. A câmara fixa-se no seu rosto, à espera de lágrimas que parecem inevitáveis. "Mas de certa forma foi um alívio... A intensidade de ir todos os dias à procura dela... Foi muito duro para mim... Dava imenso trabalho..."

"Dava imenso trabalho": outro conceito inventado pela melhor, mais importante e mais engraçada de todas as espécies, sem concorrência à altura.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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