Os extremistas somos nós

O problema do mundo não são as redes sociais e as notícias falsas. Não são os outros. Somos nós, que nos tornámos incapazes de admitir que haja quem pense de forma diferente da nossa sem estar necessariamente errado.
Publicado a
Atualizado a

O pequeno facto fez-se caso, como tudo o que de pequenino acontece neste país, sempre sedento de se fazer grande por comparação com os piores exemplos de fora - nós também temos escroques e negociatas e vigarices que fazem corar -, como se fosse essa a medida de grandeza da evolução moderna. Os três bandidos fugitivos humilhados numa série de fotografias como prova de captura e logo o povo a partir-se em dois: metade do lado dos condenados que não podiam ser expostos como é feito com as vítimas de regimes menores, metade contra esses ladrões espancadores de velhinhos; uns defendendo os seus direitos, outros garantindo que não os têm; um lado inefavelmente atacando as forças de segurança, o outro garantindo-se pronto a fazer pior se os apanhasse pela frente.

A conversa de café depois de um copo a mais é agora regra, à mesa como nas redes sociais e nas caixas de comentários onde todos atacam e não há defesa possível. É assim que agora se encara os assuntos - também em Portugal -, os que amam e os que odeiam. Mesmo quando, para cúmulo da ironia, o tema é o espantoso lastro que ganham os fenómenos populistas.

No caso de Tancos, o que importa é apontar o dedo a quem sabia e a quem não sabia - e não discutir como foi possível o roubo de armas em instalações militares, avaliar o estado daquelas e de outras estruturas, atestar as condições de segurança do país e então apurar responsabilidades a todos os níveis e verdadeiramente curar as feridas. Se alguém diz uma tolice num programa de televisão, ela vira assunto de Estado e põe-se os especialistas a falar sobre a importância dos afetos, a determinação sexual e a defesa do corpo para termos argumentos que nos permitam defender o terreno que já escolhemos à partida. Quando se fala no país, importa estabelecer logo quem está a favor do método de Costa e Centeno e que necessariamente tem um ódio figadal aos anteriores decisores sob direção de Passos Coelho - as verdadeiras condições que um e os outros encontraram ao chegar ao governo importam tanto quanto o exercício de imaginar o que fariam se os momentos se invertessem no leme: nada. O que há a fazer é beber do que nos chega diante dos olhos e não perder tempo com análises ou desperdiçar energia em raciocínios - se já sabemos de que lado estamos da barricada...

A postura estende-se aos assuntos internacionais. Há anti-Trump primários e apoiantes do regime do mal como há defensores do Brasil livre e partidários do regresso da ditadura militar que se avista na sombra de Bolsonaro. Há quem veja em cada padre um pedófilo e quem ponha a Igreja acima de qualquer suspeita como há quem veja em cada refugiado um terrorista e quem considere que mesmo os que planeiam atentados são vítimas das suas realidades. Há certezas inabaláveis, mesmo se não sustentadas. Não há meios-termos nem se deixa espaço para dúvidas mesmo quando as maiorias de lá contrariam a visão do lado de cá.

Há anjos e demónios, dois lados bem definidos, e todos têm de se posicionar, de escolher e de defender de forma bélica e biliosa o seu quintal. Não se admite passeios entre as barricadas. É inconcebível que haja quem acredite que não tem de se juntar a um dos lados, contra o outro. Destilamos bílis enquanto questionamos como o extremismo cresce lá fora. E somos incapazes de ver que somos nós próprios, com a nossa crescente incapacidade de escutar quem fala de forma diferente, de ver pelos olhos de quem vê outros ângulos, de aceitar quem pensa com outras referências, que o alimentamos ao impor a nossa vontade, a nossa forma de pensar.

O problema do mundo não são as redes sociais e as notícias falsas. Não são os outros. Somos nós, que nos tornámos incapazes de admitir que haja quem pense de forma diferente da nossa sem estar necessariamente errado.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt