Ao decretar a flexibilização da aquisição e posse de armas, o presidente Jair Bolsonaro fez voltar à ordem do dia o "estatuto do desarmamento", lei sancionada por um dos seus antecessores, Lula da Silva, em 2003, com base numa proposta do então senador Gerson Camata, de 1999..A proposta de Camata parecia a antecâmara da entrada do Brasil no século XXI lado a lado com o primeiro mundo porque constituía o primeiro obstáculo à aquisição de armas desde a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil..O discurso de Camata no início das discussões e da votação da proposta foi até citado em teses de mestrado e registado, nos últimos dias, por jornais como o Folha de S. Paulo.."É claro e é necessário que as pessoas que nos veem e nos ouvem saibam que, a partir do dia em que o presidente Lula sancionar o projeto, depois de aprovado pela Câmara, os crimes não vão diminuir no Brasil, mas os que portam armas com a intenção de praticar o crime vão começar a ser cerceados, como ocorreu na Itália. Devagar, eles irão perder as suas armas. Devagar, vão acabar na prisão. E, devagar, se diminui o número de armas em mãos da população e em mãos daqueles que usam a arma com a intenção de praticar delitos e de praticar crimes.".Nascido em 1941 na cidade de Castelo, com 35 mil habitantes, a 150 quilómetros de Vitória, a capital do estado do Espírito Santo, Camata formou-se em Economia mas destacou-se na condução de programas de rádio, já em Vitória, como o Ronda da Cidade, que lhe garantiram popularidade..E assim foi eleito vereador da capital capixaba - o gentílico dos naturais do Espírito Santo. Depois deputado estadual e mais tarde deputado federal. Em 1983, tornou-se o primeiro governador eleito no estado após o fim da ditadura militar. Foi ameaçado, entretanto, de processo pelo então presidente, João Batista de Figueiredo, por supostamente o ter chamado de "general mentiroso"..Nesse ano casou-se com Rita Paste, que passaria a assinar Rita Camata, quadro político relevante no estado e no país, ao ponto de ter sido escolhida como candidata a vice-presidente na lista encabeçada por José Serra, que viria a perder as eleições para a dupla Lula-José Alencar, em 2002..Depois de governar o estado e de ser alcunhado "governador das estradas", pelos incontáveis quilómetros de rodovias construídos, Camata foi então eleito para o Senado de 1987 a 2011, onde proporia e defenderia, entre outros projetos, o "estatuto do desarmamento", o mais mediático de todos eles..Ao contrário do que é infelizmente comum entre os titulares de cargos públicos no Brasil, principalmente os do seu partido, o PMDB, o político passou incólume por suspeitas e denúncias de corrupção. Até 2009..Nesse ano, um seu assessor, Marcos Andrade, acusou-o de receber subornos de construtoras civis, de fraudar prestações de contas eleitorais e de obrigar funcionários a pagar-lhe despesas pessoais com os seus salários..Camata abandonou a política por essa altura, não sem antes classificar as acusações de "calúnias" e "falácias" e de processar Andrade, que classificou de "portador de distúrbios psiquiátricos". Por causa do processo, o assessor teve o equivalente a 15 mil euros bloqueados numa das suas contas bancárias..No dia seguinte ao Natal, o ex-senador foi almoçar a um restaurante na praia do Canto, em Vitória. Quando saiu, Andrade aguardava-o junto ao quiosque de jornais em frente. Após uma breve discussão, o assessor atingiu o ex-chefe com um tiro no ombro que resultaria na sua morte, aos 77 anos..A arma utilizada estava registada no nome do assassino mas com a licença, que precisava de ser renovada de cinco em cinco anos, caducada. Com a flexibilização decretada por Bolsonaro, que prevê prazo de dez anos, a pistola estaria regular. Mas o lado burocrático não é o mais importante da lei que matou Camata, o pai do desarmamento no Brasil.