É sempre útil ler Kafka nos nossos dias. Não pelo grotesco das situações, mas pelo realismo ácido de cenas de um quotidiano que em cem anos não mudaram muito..Ou quase nada. A situação que a seguir descrevo é real. A sócia-gerente de um pequeno estabelecimento, encerrado no estado de emergência, solicita o apoio das medidas extraordinárias de combate à covid-19 promovidas pelo Estado e é-lhe recusado acesso ao programa. No sistema da Segurança Social figura a indicação de que seria trabalhadora por conta de outrem, ligada a uma firma, encerrada em 2003. Agendado um Zoom, é-lhe confirmado por um funcionário zeloso que sim, é certo que na base de dados da Segurança Social a dita empresa é dada como encerrada no ano indicado, não tendo mais responsabilidades para com esta entidade do Estado português. Todavia, o sistema não retirou a pequena empresária do regime de trabalhadora por conta de outrem e, ainda que também lá figure como sócia-gerente de nova empresa, nada pode fazer, pelo que a sua elegibilidade aos apoios é negada..Questionar o funcionário é tarefa vã. "Está no sistema. É difícil mudar. Faça uma exposição." Kafka não faria melhor. Este é o mundo do Processo. Parece-me ouvir a resposta do advogado a K., quando este o interpela sobre o seu caso: "Não posso expor-te agora todos os argumentos, não compreenderias nada; contenta-te em saber que eles são numerosos.".Se alguma coisa aprendemos em cem anos de estonteante modernidade tecnológica, é que do sistema burocrático não há salvação. Na melhor das hipóteses sobrevivemos, na pior morre-se. Esteticamente, como a personagem de Kafka; social e politicamente, como os excluídos da máquina burocrática da administração pública; materialmente, como os deportados do funcionário Eichmann..A modernidade que nos legou o fulgor libertário da ciência ofereceu-nos a quadratura repressiva do sistema burocrático, que de uma lógica funcional que servia a organização dos impérios, como a Áustria-Hungria de Franz Kafka, se tornou em instrumento de poder da administração do Estado sobre os cidadãos..Se é certo que necessitamos de processos, também é verdade que eles devem servir as pessoas e não o contrário. Sob a capa protetora do sistema vem a irresponsabilidade e a acefalia. E vem a apetência para enganar o sistema e para a corrupção..No Estado Moloch português, reformar a administração pública não se faz com sistemas tecnológicos, mas com o ajustamento da máquina às necessidades reais e formação das pessoas para a responsabilidade..A transformação digital em que "o Plano" injetará milhões é necessária, mas não suficiente. É urgente deixar de olhar para a formação na perspetiva instrumental do jargão de reskilling e upskilling..Que tal incutir autonomia, pensamento crítico, formar para a decisão ética? Na transformação do funcionário joga-se o futuro do país. O sistema serve para termos sempre mais Estado. Só que Portugal precisa de um Estado melhor.. Reitora da Universidade Católica Portuguesa