Podemos retirar três lições da greve dos camionistas, relacionadas com a moldura institucional, o nível de desenvolvimento infra-estrutural e as relações de trabalho em Portugal. Quanto ao primeiro tema, aquilo que podemos observar a partir de longe é que o país tem um quadro legislativo bem montado, que permite a actuação do governo em matérias sensíveis, como a do abastecimento de combustível. As greves devem ser todas iguais, mas os sectores em que elas ocorrem são diferentes e os governos devem poder agir de forma diferente, consoante o impacto de cada greve no funcionamento do país. Como concluiu Susana Peralta no Público, a greve foi dirigida por "um negócio de outsourcing da luta vendido por" um indivíduo que soube aproveitar as dificuldades salariais no sector. A pessoa em causa pensava que sabia jogar com a lei, mas teve como resposta um governo a recorrer à força institucional que lhe era permitida. Goste-se ou não, foi isso que aconteceu. Essa capacidade de resposta é uma herança do desenvolvimento institucional do país, que não deve ser esquecida - nem as suas consequências retiradas da alçada da supervisão democrática..A segunda conclusão deixada pela greve está relacionada com os níveis de dotação de infra-estruturas do país. No Twitter, Pedro Magalhães recordou um mapa, bem conhecido de quem lida com os petróleos, que mostra que a rede portuguesa de oleodutos tem uma densidade menor do que a espanhola. Em muitas áreas, o nível de infra-estruturas em Portugal é menor do que o resto da Europa, sinal de décadas - ou séculos - de menor investimento, associado ao menor desenvolvimento do país. Mas como se pode ver nos comentários à publicação do mesmo mapa, em Portugal estes investimentos aparentam ter uma opinião pública desfavorável. Presentemente, quando se fala em infra-estruturas, logo vem alguém dizer que se investiu de mais em "betão" e que Portugal tem uma das melhores redes de estradas da Europa. Na verdade, nas estradas, Portugal, chegando tarde, atingiu um nível médio relevante e será pouco o que restará fazer neste capítulo. Se houve excessos, eles foram marginais..Segundo dados publicados pela Comissão Europeia, Portugal situa-se numa posição inferior noutros indicadores, como a eficiência do transporte aéreo, dos serviços portuários, dos caminhos-de-ferro e, claro, da rede ferroviária de alta velocidade. Neste último campo, já foi inclusivamente ultrapassado por Marrocos, onde recentemente foi inaugurado o primeiro troço de 180 km, entre Tânger e Casablanca, a completar em 2020. Sem dúvida que é preciso colocar na agenda política a discussão sobre futuros investimentos em infra-estruturas e sacudir de uma vez a ideia do "excesso de betão"..Esse debate é importante porque tem de ser associado às urgentes preocupações ambientais. Assim, as perguntas poderiam ser sobre se é prioritária a solução do aeroporto do Montijo, sobre quando se retomam as negociações para a ligação à rede de alta velocidade espanhola, ou sobre quanto se deverá investir na mobilidade eléctrica ou na rede de utilização das bicicletas. Era bom vermos estes temas discutidos na campanha eleitoral que se avizinha..A terceira e última lição da greve de motoristas prende-se com a observação de que é preciso ainda muito trabalho para melhorar os salários e os níveis de rendimento de uma grande parte da população portuguesa. Esses níveis têm sido negativamente afectados pela globalização, mas isso não chega como explicação. Há aspectos da negociação salarial que precisam de ser tomados em consideração, relacionados com o poder económico e político das partes envolvidas e com as políticas de redistribuição dos rendimentos. Há mais gente a ganhar abaixo dos respectivos níveis e ritmos de crescimento de produtividade do que acima..Na verdade, os temas relevados pela recente greve dos motoristas estão relacionados, uma vez que a capacidade de intervenção do Estado, a discussão sobre o futuro desenvolvimento das infra-estruturas e os problemas associados com a melhoria das condições do trabalho estão inevitavelmente cruzados. A iniciativa pública é importante por si só, tem efeitos de arrasto na iniciativa privada, e novas infra-estruturas permitem melhorias de produtividade que deverão ser transmitidas aos salários. As greves mostram que há muito ainda por fazer..Um tema recorrente nestas crónicas é o da necessidade de abandonar os erros e os preconceitos de análise económica de que o país ainda sofre, de modo que se possa abrir novas frentes de reflexão e de intervenção de políticas públicas, de iniciativa empresarial e de melhoria das condições de vida, social e ambiental. As ideias do passado ao passado pertencem..Investigador da Universidade de Lisboa. Escreve de acordo com a antiga ortografia.