Abrigos

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No concerto do Coliseu do Porto, numa noite de chuva dura, Katia Guerreiro homenageou José Mário Branco, uma noite intensa, emoções altas e baixas, maiores e menores, que sempre seria, mas que foi mais longe em cada um dos extremos pela morte nem dois dias antes do seu mestre que chorou e festejou. O fado é um porto de abrigo mesmo do próprio fado.
Desde muito cedo percebi que precisava do Porto na minha história com Lisboa, que Lisboa não era nada sem um Porto à espreita, um Porto contraste, um Porto possibilidade, um Porto outro. Foi muito claro isso, um dia, há muito tempo.

Porto tem porto no nome mas é Lisboa quem tem porto dentro. Lisboa é sempre porto, de chegada, de desabrigo, de caixotes, contentores, gruas, visitas breves e longas, de cruzeiros e cruzados - é sobretudo porto de partida e de começos. Mas nem Porto nem Lisboa são portos de abrigo. Porto é abrigo, Lisboa é porto. Lisboa não é porto de abrigo, coisa que se define por tirar o medo, esperar que amaine o pânico para depois seguir viagem, e Lisboa não é puta de marinheiros lívidos de temporais, que Lisboa tem as suas ondas e os seus vendavais. E o Porto é abrigo, mas não porto de. É abrigo, estabilidade e constância, um tempo mais lento, uma identidade cosida a fio mais forte, mas abrigo que dura e não abrigo enquanto chove. Até porque se chove, é no Porto que chove.

Quem achava que tinha porto de abrigo em Lisboa era Paul (Bruno Ganz), em Dans la Ville Blanche, de Alain Tanner (1983), mecânico de um petroleiro que ficou apeado na cidade, com uma câmara, para além da outra. Achava que tinha abrigo em Rosa (Teresa Madruga), empregada da pensão onde fica, enquanto escrevia cartas sobre nada à mulher na Suíça, uma Suíça não branca mas limpa, também com um rio, mas não o Tejo. No Cais do Sodré houve em tempos um restaurante chamado Porto de Abrigo, que era porto de abrigo. A super-8 de Paul a mostrar a crueza de uma Lisboa, ruas, pessoas, ruídos que ao mesmo tempo são de outro século e de ontem à tardinha. Mas o Tejo e as suas margens, a luz crua e completa como só Lisboa tem mas nunca avisa qual, estão lá como hoje.

Rosa um dia desapareceu, ou deixou de aparecer. Paul podia ter lido Silesius, trezentos anos antes, e achar que a Rosa não tem porquê (Die Rose ist ohne Warum). Mas não foi isso. Rosa desapareceu quando percebeu que Paul só buscava um porto de abrigo, e não queria um porto onde se começa, nem um abrigo onde se fica. No final, quando ele sai de Lisboa, de comboio vai sentado, e há imagens de uma Rosa. Mas vai como passageiro, e Tanner já tinha falado disto, em 1976, no "Jonas qui aura 25 ans en l'an 2000", o passageiro apenas tem o que lhe mostram, mas o condutor penetra na paisagem, e os carris que parecem juntos abrem-se sempre à medida que se avança. O passageiro nunca tem de lidar com isto, mas o condutor descobre que as linhas são sempre paralelas, permitem andar, mas nunca se cruzam.

Jonas é um filme sobre o que não aconteceu do maio de 1968, como FMI do José Mário Branco é sobre o que não aconteceu cá. Katia Guerreiro fez uma linda homenagem ao seu mestre, à improbabilidade da relação que criaram e à força criativa e transformadora desta relação, a única coisa que conta. Katia Guerreiro e a sua voz verdadeira, profunda, quente, nasal, inteligente, poderosa, próxima mas nunca familiar, porque a familiaridade gera o desprezo. Também evocou Argentina Santos, que ousou os melhores rrs de sempre e os cantou em A Minha Pronúncia, rrs que contrastam com os rrs de Carminho que sintetizam o novo-riquismo que rodeia o fenómeno. Os rrs de Katia estão no ponto perfeito de intersecção entre uns e outros.
Katia cantou Rosa Vermelha do Ary dos Santos, mas tantas vezes cantou As Rosas de Sophia, rosa e rosas que têm rrs, que se casam com a Promessa "da vida multiplicada". Paul escreve num telegrama, na estação de Santa Apolónia, que o "único país que realmente ama é o mar". Talvez também fosse isso que Sophia realmente amasse, o mar, talvez abrigada na Casa Branca, na praia da Granja, que não é Lisboa nem Porto, mas é Lisboa e Porto. Como ela foi.

Advogado

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