A forma exaustiva com que acompanhamos sofregamente o penoso Brexit está a tirar-nos clarividência para pensar outras dinâmicas com impacto duradouro nos interesses permanentes de Portugal. Desde logo a potencial desagregação da ideia de uma Espanha com mínima convivência interna, enquadrada institucionalmente por uma Constituição aceite e respeitada, com o pêndulo da governação oscilando num espetro político tendencialmente mais moderado do que extremado. Tudo isto está, infelizmente, em causa de forma progressivamente deteriorada e com uma eleição à porta que pode alterar de vez os equilíbrios dos últimos 40 anos. Tendo Espanha uma influência tão grande na saúde da nossa economia, do nosso sistema financeiro e do nosso processo de decisão político, podemos estar descansados sobre a qualidade da avaliação prospetiva que faz toda a nossa máquina produtora de política externa, isto é, governo, Presidência da República, agências setoriais do Estado, serviços de informação, partidos políticos, think tanks, universidades?.O mesmo pode ser dito para as dinâmicas europeias ao virar da esquina, sobretudo a oficialização dos vários círculos de integração à la carte, os quais se aprofundarão com quem tiver condições para estar, deixando para trás todos os outros. Como estamos em Portugal a avaliar essa participação de geometria variável? De forma séria, realista, ou com base em intenções voluntaristas sem acautelar consensos internos sustentáveis ou mesmo esvaziando o alcance perante ciclos económicos menos generosos? Mais uma vez, governo, Presidência da República, agências setoriais do Estado, serviços de informação, partidos políticos, think tanks, universidades, estão a trabalhar estas questões de forma cuidada, e preventiva, ou continuamos a tomar decisões com impacto estratégico em cima dos acontecimentos e formatados por opções de terceiros? .O quadro penoso do Brexit abriu, por exemplo, um amplo espaço de debate sobre novas constelações atlantistas na Europa, dando paradoxalmente a Londres alguma capacidade de envolver países do norte da Europa nessa frente sem uma grande supervisão de Paris ou Berlim. Que eu tenha notado, apenas Paulo Rangel tem suscitado argumentos sobre uma dimensão tão importante para a nossa política externa. É meritório, mas infelizmente insuficiente. Portugal, país de média dimensão europeia que faz do Atlântico veículo amplificador dos seus interesses nacionais, tem todo o interesse nesse debate. Aliás, pese embora os ângulos de análise ao recente encontro entre Bolsonaro e Trump terem privilegiado outras coreografias e desprezado essa dimensão, a aproximação entre essas duas administrações retira espaço à afirmação geoestratégica de Portugal no Atlântico, sobretudo num tempo em que Madrid não tem conseguido acompanhar os bons ofícios diplomáticos conquistados por Lisboa em Washington, corrida peninsular que vai pautando a nossa afirmação atlântica e algum peso extra no concerto europeu. Basta recordar a influência que essa competição teve na decisão portuguesa de apoiar a guerra no Iraque..O encontro entre Bolsonaro e Trump teve ainda o condão de expressar um duplo alinhamento capaz de resultar em pressões extra para Portugal. O primeiro consolida um eixo ideológico contrário à nossa matriz aberta, cosmopolita e multilateral. E muitos líderes de potências (regionais e mundiais) fazem uma ordem internacional menos coincidente com o nosso modo de atuação, obrigando-nos a tomar decisões estruturais: ou estamos convictos do lado democrático, liberal e multilateral da nossa ação externa, defendendo-a e alinhando esforços com o máximo de países possível para garantir a sobrevivência desta ordem internacional; ou enveredamos por adulterações comportamentais constantes, cedências a valores que não são compatíveis com o nosso regime democrático, fomentando por essas vias a fragmentação dos nossos espaços de afirmação estratégica, sobretudo na Europa. O segundo expõe uma estratégia concertada de desvalorização dos mecanismos multilaterais, das regras comerciais, do papel das organizações internacionais e podem acabar por acomodar uma qualquer intervenção na principal crise da região, a Venezuela. A precipitação desse cenário, sem acautelar todos os riscos ou ter na base legitimidade e legalidade reforçadas, não só põe em cheque o desempenho cauteloso da ação de Portugal junto das partes em Caracas, como vulnerabiliza ainda mais a comunidade lusodescendente que lá vive..Num ano particularmente competitivo em termos eleitorais, Portugal tem à sua volta um conjunto de pressões que deviam testar a nossa forma de pensar e fazer política externa, assim como nos obrigarão a preparar o próximo ciclo internacional de uma forma mais preparada e robusta. O primeiro passo é atuarmos mais em rede internamente, aproveitando melhor as valências de todos os que pensam e fazem a política externa portuguesa. Um bom exemplo disto é o WinterCEmp, neste fim de semana em Ílhavo, organizado pela representação da Comissão Europeia em Portugal, e que reúne quase uma centena de pensadores e fazedores portugueses sobre a Europa para discutir o seu atual momento, antecipar tendências e apontar soluções. Um país tão pequeno como o nosso não se pode dar ao luxo de ter estas cem pessoas dispersas ou de costas voltadas. .Claro que podemos continuar a olhar a política internacional com a lente tradicional, sem incorporar inovação na administração central, esperando que nada atinja os nossos interesses, que os grandes choques tectónicos não se intrometam nos ciclos eleitorais, confiando excessivamente na nossa capacidade diplomática, apoiando decisões num consenso parlamentar que já conheceu melhores dias, continuando a envolver praticamente nenhuma expertise exterior aos gabinetes políticos ou fomentando uma residual massa crítica que poderia potenciar, através de um escrutínio maduro, melhorias no processo de decisão. Claro que podemos. Mas passaremos totalmente ao lado da avaliação prospetiva sobre as disrupções tecnológicas que atingem fortemente a globalização, sobre as formas menos convencionais de relacionamento entre Estados, as novas dinâmicas paradiplomáticas ou as grandes tendências geopolíticas com impacto nas empresas..Podemos ficar para trás em tudo isto ou arregaçar as mangas e fazer as coisas de forma profissional, integrada e sustentada. As pressões são várias e convergem aceleradamente no tempo..Investigador universitário