Era um homem prático e pouco dado a sentimentalismos. Negociante astuto e implacável , solitário, "habituado a ser visto com antipatia". E foi assim que se tornou multimilionário. Mas era também um viajante, amante da natureza, filantropo, apaixonado por arte. E foi assim que se tornou o Calouste Gulbenkian que, hoje, 150 anos depois do seu nascimento, continuamos a celebrar: o homem que morreu mas no seu testamento determinou que em Lisboa se criasse uma fundação com o seu nome e que tivesse "como propósito fundamental melhorar a qualidade de vida das pessoas através da arte, da beneficência, da ciência e da educação". A Fundação Calouste Gulbenkian está em Portugal mas trabalha para o mundo, porque esse era também um dos propósitos do seu fundador, arménio que viajou pelo planeta e sentiu-se em casa em muitos sítios diferentes. A sua última casa foi o Hotel Aviz, em Lisboa, para onde se mudou em 1942, em plena Segunda Guerra Mundial. E foi também aí que morreu, a 20 de julho de 1955, aos 86 anos..O miúdo de Scutari.Calouste nasceu numa família da elite arménia em Scutari, Constantinopla, no Império Otomano (atualmente Uskudar, Istambul, na Turquia), no ano em que se abriu o canal de Suez, 1869. O pai, Sarkis Gulbenkian, foi governador de Trebizona, no mar Negro, e começou aí a fortuna familiar. A casa da família e a primeira escola de Calouste ficavam no lado asiático da cidade, os escritórios e negócios da família estavam no lado europeu. Cresceu entre muitas culturas. Os arménios têm a sua própria língua e o seu alfabeto e são predominantemente cristãos. Calouste manteve uma relação distante com o pai mas bastante próxima da mãe - dormiu no quarto dela até aos 14 anos quando foi enviado para casa de um tio em Marselha. Nas palavras do pai: "A mãe mima-o muito e, por isso, ele é nervoso e tímido. Mal diz uma palavra. Na Turquia, era incapaz de dizer olá a uma rapariga; julgo que ele considera isso imoral. Enviámo-lo para a Europa na esperança de lhe mudar o caráter.".De Istambul para o mundo.De Marselha, a família enviou-o em 1884 para Londres, para o King's College, onde estudou Engenharia. No final do curso, o pai oferece-lhe uma viagem de comboio a Baku. A viagem pelo Cáucaso dura cerca de um mês. Ele anda pelos campos petrolíferos e visita o centro refinador, observando as grandes mudanças que aconteciam na exploração de petróleo da região. É um negócio em visível expansão. No regresso, Gulbenkian escreve um livro, que foi publicado em 1891, La Transcaucasie et la Péninsule d'Apchéron; Souvenirs de Voyage, sobre a viagem pela Transcaucásia e conta uma cena em que fica coberto pelo petróleo que jorra do solo. Diz que achou aquela chuva agradável. Mostra-se otimista: "Portanto, tudo corre pelo melhor. O passado é encorajador, o presente soberbo e o futuro deslumbrante.".Deixou de ser um miúdo tímido e passou a ser um jovem determinado. Em junho de 1892, três anos depois de se ter apaixonado à primeira vista, casa-se com Nevarte. Ele tem 23 anos, ela 17. Depois da morte do pai e do massacre de 1896, Calouste muda-se com a família para o Egito. No barco para Alexandria, reencontra um homem que tinha conhecido em Baku, o magnata arménio do petróleo Alexander Mantachev. Gulbenkian, que tinha perdido tudo na fuga, convence Mantachev a abrir escritório em Londres e a nomeá-lo representante das petrolíferas independentes russas. Em 1897 muda-se para Inglaterra. Em 1902 torna-se cidadão britânico..O senhor 5%.Em Londres, Gulbenkian transforma-se num dos principais intermediários entre os produtores arménios de petróleo e os grupos financeiros internacionais e é nomeado conselheiro financeiro das embaixadas do Império Otomano em Paris e Londres. Esteve na fundação do Banco Nacional da Turquia (em 1908) e da Turkish Petroleum Company (em 1912). É "um facilitador de bastidores", ao mesmo tempo um consultor e intermediário, e um negociador e investidor com participações em várias companhias ligadas à exploração de minério, gás e petróleo espalhadas por todo o mundo. E, naqueles anos politicamente conturbados, é também um diplomata a tentar estabelecer pontes entre o Império Otomano e os países europeus..A partir dos anos 1930 começa a ser conhecido como o "senhor 5%", por grande parte da fortuna provir dos 5% que conseguiu manter na Turkish Petroleum Company. A sua fortuna cresce de forma desmedida, o que lhe permite, apesar de alguns beliscões, viver um pouco à margem dos conflitos europeus - incluindo duas guerras mundiais..Vive em Inglaterra até 1914, depois na França. Durante a Segunda Guerra Mundial, a nacionalidade britânica é-lhe retirada porque fica a viver em França, sob o regime de Vichy, aliado da Alemanha nazi. Recupera a nacionalidade em 1945. Nessa altura já morava em Lisboa desde 1942, ocupando várias suites do Hotel Aviz..Colecionador apaixonado.Um dia, aos 14 anos, o pai deu-lhe uma moeda para que ele comprasse o quequisesse; Calouste correu ao bazar e comprou uma moeda antiga; o pai achou uma tolice mas ele ficou contente. Já era um colecionador e não sabia. O seu interesse pela arte começou muito cedo mas as primeiras aquisições não foram as mais acertadas. No final de 1903 iniciou uma série de lições individuais no Louvre com o curador e colecionador Camille Benoît. Começa então a fazer algumas compras mais informadas, por exemplo, de Anthony Van Dyck, Joshua Reynolds ou Thomas Gainsborough. Também se interessa por tapetes e arte islâmica e começa uma relação muito próxima com o joalheiro René Lalique. Rubens, Fragonard, Rembrandt, Monet, Renoir, Degas, Manet são alguns dos nomes que se hão de juntar à sua coleção. Além disso, compra importantes peças de escultura do Antigo Egito, manuscritos, cerâmicas orientais, medalhas, livros..Em 1922 adquire o palacete no n.º 51 da Avenue d"léna, em Paris, para lá colocar muitas das obras de arte que fora adquirindo. Recheado de mobiliário riquíssimo, tapeçarias, cerâmicas, pratas, quadros, esculturas e livros preciosos, o palacete assemelha-se a um museu..Quando a sua coleção de arte começa a ganhar expressão, Calouste inicia conversações com Kenneth Clark, diretor da National Gallery, em Londres, para que esta fique num "Instituto Gulbenkian" a construir junto ao museu. Porém, com a Segunda Guerra Mundial e o facto de Gulbenkian ser considerado inimigo, Londres perdeu o interesse na coleção. Gulbenkian preocupa-se muito com o futuro dos seus "filhos", como chamava aos seus quadros, e chega a considerar outras localizações, como Washington, até que, com intervenção do seu advogado em Portugal, José Azeredo Perdigão, decide-se por Lisboa..Aquando da sua morte, em 1955, a sua coleção de arte está avaliada em 15 milhões de dólares..O legado.Calouste Gulbenkian preocupava-se com o futuro não só da sua coleção de arte, que desejava que ficasse reunida num só local e disponível para o público, como também queria que a sua fortuna servisse para manter algumas das obras filantrópicas que iniciara. Em 1953, no seu último testamento, determina a criação de uma fundação com o seu nome em Lisboa. Em 1969 foi inaugurado o edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, na Avenida de Berna, em Lisboa. Num país fechado num regime totalitário e com poucos fundos para a cultura, a Fundação Gulbenkian tornou-se o principal financiador de artistas, permitindo-lhes criar e (tão importante também) ter formação e viajar..Atualmente a fundação conta com um museu, que alberga a coleção particular do fundador e uma coleção de arte moderna e contemporânea; uma orquestra e um coro (e teve durante muitos anos uma companhia de bailado); uma biblioteca de arte e arquivo; um instituto de investigação científica; e um jardim, que é um espaço central da cidade. Além disso, tem vários programas de bolsas e outros financiamentos nas áreas sociais e científicas.