A gripe, o presidente Wilson e a ordem internacional
Em 1918 e 1919, o mundo conheceu uma fortíssima pandemia de gripe que seria designada por "gripe espanhola". A pandemia teve fortes efeitos e repercussões nos vários níveis da atividade humana e em diversas regiões do globo. Mais pessoas morreram devido à gripe do que à I Guerra Mundial, que tinha começado em 1914. E quando os líderes das potências vencedoras da I Guerra Mundial se sentaram à mesa das negociações, em Versalhes, para definir as condições da paz, os efeitos da gripe continuavam a fazer-se sentir e o vírus acabou por condicionar a evolução das conversações.
No início de abril de 1919, o presidente norte-americano Woodrow Wilson sentiu-se mal e retirou-se de forma abrupta da reunião que mantinha com o Presidente francês, George Clemenceau, e os primeiros-ministros britânico e italiano, Lloyd George e Vittorio Emanuele Orlando. De saúde frágil, Wilson já se sentia doente quando a reunião começou, com fortes dores de cabeça e de estômago, mas não quis deixar de estar presente num momento que parecia crucial nas negociações entre os quatro países vencedores. Mas o aumento da febre e um ataque de tosse incontrolável obrigaram-no a abandonar a reunião.
O presidente tinha ficado "gravemente doente" com o vírus influenza e teve de abandonar as negociações durante alguns dias, sendo substituído nessa fase pelo seu conselheiro Edward House. A doença reforçou as inquietações de Wilson relativamente ao curso das negociações e à incompatibilidade da visão europeia com a visão americana quanto aos termos da paz. House, julgava Wilson, iria ter maior propensão para o compromisso e poderia vir a ceder nalguns pontos considerados essenciais pelo presidente e sobre os quais ele se mantinha intransigente, tendo inclusivamente ameaçado, pouco antes de ficar doente, regressar a Washington sem acordo de paz. As conversações estavam, de facto, numa fase crucial em que se discutiam questões centrais para o futuro da Europa e do mundo, como as reparações da Alemanha, o futuro dos territórios coloniais ou a criação da futura Liga das Nações.
Deste modo, assim que se sentiu um pouco melhor, o presidente insistiu em voltar às negociações. Para alguns autores, porém, a doença do presidente tinha comprometido a tenacidade e o vigor com que defendera a posição americana, acabando por explicar a sua cedência às posições europeias. O futuro presidente Herbert Hoover, na altura responsável pela ajuda externa norte-americana na Europa, notou que Wilson tinha perdido a sua "resiliência"; o coronel Starling, dos Serviços Secretos, sentiu a ausência da antiga "rapidez de compreensão" do presidente e surpreendeu-se com o facto de Wilson agora se "cansar facilmente"; e Irwin Hoover, o homem que geria os serviços da Casa Branca, afirmou que o presidente "nunca mais foi o mesmo" depois de ter contraído a gripe em Paris.
A esta dimensão individual temos de acrescentar um conjunto de outras justificações que nos conduzem para o contexto internacional e mesmo nacional em que Wilson agia. Os Estados Unidos tinham sido decisivos no desfecho da I Guerra Mundial, mas o seu peso a nível internacional não era ainda tão preponderante que permitisse a Wilson convencer os líderes europeus da oportunidade da sua visão "wilsoniana" para o mundo do pós-guerra, aquela que fora revelada nos célebres 14 pontos expressos de forma eloquente num discurso de janeiro de 1918. Os 14 pontos de Wilson representavam a sua visão internacionalista para o mundo do pós-guerra. Renunciando à política do equilíbrio de poderes que havia dominado o século XIX e que Wilson considerava intimamente ligada à existência e perpetuação de regimes autoritários, o presidente apelara à liberdade dos mares e da navegação, ao livre-comércio, à redução do armamento e ao fim gradual do colonialismo. Mais ainda, Wilson coroava o seu genuíno comprometimento com uma ideologia internacionalista, com o apelo para que os Estados Unidos participassem numa "associação geral de Nações" que tivesse como fim último oferecer garantias mútuas de independência política e integridade territorial dos Estados membros.
Esta visão não se imporia em Versalhes. Os aliados europeus, com especial destaque para a França, acabaram por forçar um Wilson manifestamente enfraquecido a aceitar uma paz que comprometia e punha em causa muitos dos princípios por si enunciados nos seus catorze pontos. Por exemplo, o Tratado de Versalhes impunha à Alemanha o pagamento de pesadas reparações ou indemnizações de guerra, procedia a uma divisão do seu império colonial pelas restantes potências europeias, reduzia o seu acesso territorial a matérias-primas estratégicas, impossibilitava o seu rearmamento e os meios adequados para a sua defesa nacional e, por fim, negava o seu acesso à Liga das Nações.
Também a nível interno não existia ainda nos Estados Unidos consenso suficiente quanto à política internacionalista preconizada por Wilson e quanto ao papel que os Estados Unidos deveriam desempenhar na nova ordem internacional. As dificuldades sentidas em Versalhes tinham reforçado a convicção de Wilson da necessidade de uma organização internacional de segurança coletiva na qual os Estados Unidos desempenhassem um papel de relevo. Ao regressar de Paris, empenhou-se numa viagem por vários estados norte-americanos, procurando convencer a população e os seus representantes da necessidade de ratificar o tratado. Uma vez mais traído pela saúde, o presidente não teria sucesso em persuadir um Senado em que o isolacionismo era ainda dominante. O Senado norte-americano recusou-se por duas vezes a ratificar o Tratado de Versalhes e a aceitar a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações.
O chamado "momento wilsoniano" não seria, nesta fase, mais do que isso mesmo. Apesar da influência do presidente e do seu prestígio internacional, continuaram a prevalecer internamente, até à entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, o isolacionismo e o nacionalismo de organizações como o America First Commitee, criado em 1940 para se opor à entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial. Mas a visão de Wilson acabaria por se impor, mesmo que para isso o mundo e os Estados Unidos tivessem de atravessar mais um conflito mundial. O wilsonianismo seria, afinal de contas, a doutrina dominante da política externa norte-americana durante a segunda parte do século XX e no início do século XXI, com os Estados Unidos a desempenhar o papel de potência liderante da ordem internacional liberal. Algo que hoje parece estar novamente a ser posto em causa.
Diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE