Aos 9 anos já os pais o levavam para a Ginjinha, na Rua das Portas de Santo Antão, em Lisboa. Eles bebiam a bebida e ele comia o fruto. Foi assim que se agarrou ao vício. Mas não os culpa, nunca o fez: "Foi a família que Deus me deu, é a família que aceito." Mesmo que esse vício o tivesse atirado para a rua durante 26 anos. O pai morreu há 19 anos, a mãe tem 83, muito doente, já não consome, mas o irmão de 60 ainda..Francisco Garcia, de 53 anos, viveu em Lisboa, no Porto, procurou abrigo em França e em Itália, mas regressou sempre à capital, à sua terra, e ao álcool. Um dia, 24 de novembro de 2010, deixou tudo para trás - "sou muito oito ou oitenta", confessa - e "a frio", como costuma dizer. "Sem médicos, sem comprimidos, sem apoios." Era o tudo ou nada, já o tinha tentado várias vezes, recaía sempre. Nesse mesmo ano, em maio, entrou no Hospital Júlio de Matos, para desintoxicação, mas dois meses depois recaía. Voltou à rua. Bebeu sofregamente, "consumi muito". Sentiu culpa, admite. Mas naquele dia, não sabe porquê, decidiu não tocar mais numa gota de álcool. Entregou-se à oração, a Nossa Senhora de Fátima e a Santa Isabel da Trindade. "Pedi-lhes que me ajudassem a deixar o vício.".Passou dois meses sem beber e a viver na rua, só em janeiro conseguiu ir para um quarto que a Santa Casa da Misericórdia lhe arranjou. Foi duro, mas nunca mais tocou numa gota, desde há oito anos. Sabe que nunca poderá dizer que "nunca vou recair". A tentação está ao virar da esquina, mas "tem tido uma força inacreditável", diz quem o conhece. Em março de 2011 ingressou numa comunidade terapêutica, onde esteve seis meses. Regressou a Lisboa, conseguiu trabalhos a prazo, foi residente nas Irmãs de Calcutá, onde hoje faz voluntariado, e cada dia que passa diz: "Foram mais 24 horas." Agora está desempregado, vive com o que lhe dão, com o que lhe chega, seja algo de bom ou uma preocupação. O futuro será aquilo que "Deus me enviar". Sabe que tem uma missão: ajudar os outros, "o mais que puder e tanto quanto eu fui"..Francisco, nascido e criado em Lisboa, teve sempre fé. Mais novo chegou a ingressar no Convento da Cartuxa, em Évora, queria uma vida de reclusão, mas saiu, "por condições de saúde. A ordem tem regras muito rigorosas". Esteve um ano no Seminário da Ordem de São Francisco de Assis, em Leiria, queria ser franciscano, "é um marco para mim, mas tive de sair, disseram-me que não tinha vocação. Não estava preparado. Hoje penso que Deus não o quis na altura e os homens também". Os companheiros de rua, como lhes chama, chegaram a dar-lhe a alcunha de "Fradinho". "Mesmo na rua tentava sempre ajudar quem precisava, nem que fosse atenuar os conflitos e a agressividade que, às vezes, surgiam.".Era uma vocação escondida. E a vida afastou-o de Jesus, não por ele mas "por mim. Sentia-me mal, culpa, em relação a Ele e à sociedade". Hoje faz parte da ordem de leigos de Nossa Senhora do Carmo, fez profissão solene em 2016. Não esquece quem foi, não esquece quem é e só pede a Deus que lhe dê "uma fé ainda maior do que a que tenho". Aos outros, deseja que "sejam felizes, que encontrem o verdadeiro amor", que não se deixem esmagar por uma sociedade consumista. Deseja que "sejam capazes de olhar para o outro, ouvi-lo, cuidar dele e amá-lo como é. Foi isso que Cristo fez". Para quem não é crente também tem uma palavra: "Acreditem neles próprios, isso basta.".Há muitas formas de ser sem-abrigo.O homem que está à nossa frente é de figura franzina. Pele muito branca, olhos escuros, com expressão forte, palavras delicadas e de educação irrepreensível. Estende-nos a mão, pede desculpa pelo atraso, mas ali está para contar a sua história. Não tem vergonha de o fazer. "Nunca maltratei ninguém, nunca roubei, nunca fui preso, porque é que haveria de ter vergonha?", diz. Não se considera um exemplo, "não sou", mas ficaria contente se a sua história ajudasse alguém..Com o passado conheceu a vida carregada de momentos de morte, porque há "muitos tipos de morte" - sim, "a morte está presente sempre que não se respeita o outro, quando não se olha para a pessoa, quando não se a ama como é verdadeiramente, seja alcoólico, toxicodependente, homossexual". Essa morte encontrou-a na rua, tantas vezes, no olhar de tantos que por ele passavam. Foi sempre o que mais lhe custou, "o desprezo dos outros". Mas essa morte também já a viveu dentro de portas, nos empregos por onde passou, nos atos e omissões de tantos que com ele se têm cruzado nestes oito anos em que encontrou a vida que ansiava..Na rua aprendeu que o álcool "nos leva tudo", sobretudo "a vida sem amor, sem calor humano", e que o único conforto que traz é o do calor que dá ao corpo quando o frio teima em trespassar os ossos. Francisco aprendeu que o álcool traz também as feridas sociais. Por vezes, as que mais doem e que mais tempo levam a sarar. "Um sem-abrigo tem sempre um rótulo, uma chaga para a sociedade." A marca do medo de alguns, a da desconfiança para outros..Com o passado conheceu a vida de sem-abrigo, e também que "há muitas formas de se ser sem-abrigo. Um idoso que viva sozinho sem ninguém para o ajudar ou cuidar é um sem-abrigo. Não tem amor. Um casal que viva numa casa sem proximidade, sem o amor verdadeiro, é um sem-abrigo", explica, olhando-nos como se isto fosse óbvio. Não é preciso viver na rua para se ser sem-abrigo. E é a isso que "a sociedade tem de estar atenta.".Francisco frequentou a escola, "fiz até ao primeiro ano do liceu, depois fui trabalhar". Começou pelas limpezas, depois pela hotelaria e pastelaria. Aos 18 anos foi convidado a sair de casa pelos pais, por causa da bebida. Ele que vivia numa família dependente do álcool, mas saiu. Foi para um quarto, e a vida começou a ser feita entre as quatro paredes e a rua, "não havia dinheiro para tudo". Entre pagar o quatro ou a bebida, venceu o álcool..Andou sempre pela zona da Praça do Chile, em Lisboa, viveu quase 18 anos à porta da Igreja de Arroios. Dormia nas escadas, pedia esmola durante o dia a quem passava, à noite comia e bebia. "Só bebia ao final do dia, muitas vezes para aquecer o corpo. Era o único calor que tinha." Ainda foi para o Porto, atrás de trabalho para pagar o vício, acabou a viver numa casa que dividia com toxicodependentes, prostitutas, reclusos e tantos outros "companheiros"..Foi até França, esteve na Comunidade Pão da Vida, passou por Itália, na Congregação das Oblatas de Virgem Maria. "Pequenas experiências para deixar o vício", admite.."Se me davam pão com bolor aceitava".Em 2006, esteve a morrer, uma tuberculose atirou-o para o Hospital do Desterro e para o Sanatório do Barro, durante seis meses. "Ia batendo a bota. Penso que esse foi o grande milagre de Jesus. Os médicos diziam que só me tinham conseguido salvar por eu não fumar. Experimentei uma vez na escola, se quisesse entrar no mundo da droga, tinha entrado, mas já me bastava o vício do álcool", reconhece..Estava marcado que o ano de 2010 seria diferente. Em maio, quando esteve cá o Papa Bento XVI, Francisco tentou a desintoxicação no Júlio de Matos. Não conseguiu. "Depois do hospital fui para casa da minha afilhada, que me tem ajudado muito. Um dia bebi, e não voltei. Não fui capaz, tinha uma vergonha imensa. Fiquei na rua. Hoje estou bem com a família, mas não gosto de incomodar ninguém. Se me ajudam, ajudam. Senão, também não faz mal. Não sou eu que vou bater-lhes à porta a chateá-las. Vivo com aquilo que a Divina Providência me envia. Foi sempre assim, até na rua. Se me davam pão com bolor aceitava, comida estragada também, nem que depois tivesse que ir deitar ao lixo.".Francisco deixou de beber há oito anos. Diz que não precisa de se distrair para não o fazer: "Não estou nem aí. Sei que a tentação está ao virar da esquina, mas acredito que não vou recair." Incomoda-o mais o bafo de quem bebe ao pé de si do que ver as garrafas cheias onde quer que seja. "Participo em batizados e em casamentos e não me incomoda." Sempre que lhe oferecem bombons, e se esquecem de que os Mon Chéri têm álcool, recusa. "Nunca se sabe, pode ser o suficiente para recair.".Vive num quarto na Brandoa, numa casa arranjada por um amigo das Comunidades Neocatecumenais. Recebe subsídio de desemprego, "280 euros, pago 200 do quarto e fico com 80. Neste mês tive a ajuda da assistente social da Brandoa, levou-me um cabaz de compras e deu-me um voucher para uma bilha de gás. Para o ano logo se vê"..O presépio que o salvou.Nestes últimos anos, Francisco fez formação no Centro de Emprego, tirou um curso de jardinagem, trabalhou em hotelaria e como acólito numa Igreja de Lisboa, mas não "me renovaram o contrato." A sua vida tem sido assim entre trabalhos a prazo e o desemprego. Levanta-se às 05.00, sempre que a saúde deixa, faz as suas orações, voluntariado nas Irmãs de Calcutá, gosta de silêncio. Por vezes, anda pela cidade, encontra colegas de rua, fala com eles, tenta ajudá-los. "Faço as voltas pelos sítios para onde Deus me encaminha.".No mês de dezembro tem sempre uma volta especial. Todos os dias à tarde vai ao Presépio da Cidade, um projeto que começou em 2000, na Alameda, e que há anos mudou para o coração do Chiado, em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Mártires. Foi neste presépio, desenhado, construído e pintado por Sofia Guedes, que Francisco encontrou há 18 anos, e pela primeira vez, ao fim de tanto tempo, "calor humano, alguém que me ouviu e olhou para mim como pessoa". Foi assim que começou a sua reaproximação a Jesus. "Ia lá todas as tardes e só consumia um bocadinho de manhã. Davam-me tarefas e comecei a gostar." Todos os anos voltava, naqueles dias sentia-se outro, mas ainda levou dez anos até conseguir deixar a bebida. "Não era fácil. Tentei muitas vezes.".Sofia Guedes conhece bem o seu percurso. O dele e de outros que passaram pelo presépio. Ali todos são recebidos, não interessa a religião. Uns começam por estranhar, outros por não saber estar, mas alguns têm descoberto novos caminhos, deixando os que traziam agarrados a si. Sofia fala com as pessoas que passam, convida-as a sentar-se e a rezar. Mete conversa com os sem-abrigo, com as jovens nas escadas da igreja que vendem a bijuteria que criam. É uma ativista da fé. Agradece a vida que tem, "tenho muita sorte e acho que Deus me deu a missão de olhar para os outros"..Há 18 anos que consegue realizar o Presépio na Cidade, é ela a responsável. Neste ano começou no dia 7 de dezembro. Todas as tardes monta o presépio, à noite desmonta. As imagens foram feitas por si. "Todos os anos penso que tenho de fazer outras, mas estas já têm muita história, muita oração em cima, e isso conta." Em 15 dias, muitos passaram por ali, pode ser que alguém volte..Naquela tarde quase em vésperas de Natal, uma multidão apressada passa pelo Chiado, sacos e mais sacos, muito consumismo, sem tempo para "olhar os outros, sem tempo para o amor verdadeiro", comenta Francisco, que diz: "Para sociedade mudar era preciso outro Jesus Cristo, e mesmo assim não sei o que lhe fariam, se calhar matavam-no outra vez." Sofia brinca com Francisco. "Ele é um exemplo de força e de coragem. A sua recuperação foi um verdadeiro milagre, mas com muita intervenção dele. Conseguiu perdoar, tem uma capacidade de perdão incrível. Conseguiu passar do vício à virtude. É uma história incrível que conto a muita gente.".Francisco vive despojado de tudo. Tem telemóvel, mas não internet. Tem rádio, mas não televisão, mas gosta de estar informado. Não percebe porque se luta tanto para chegar a Marte, quando "não se consegue cuidar do nosso planeta." Acredita em Deus, nos homens, e o único desejo que tem para este Natal é que "todos sejam felizes".