A solidariedade europeia não se mede só em alturas de crise financeira. Ela continua ausente quando vemos centenas de milhares nas ruas da Europa de Leste reivindicando melhor democracia em Budapeste, Varsóvia ou Bucareste. Movimentos pró-União Europeia, sem coletes amarelos, totalmente ausentes da nossa imprensa, das nossas preocupações, à mercê de um autoritarismo crescente sem travão à altura. O desprezo com que os olhamos pode sair-nos caro. .Uma das obtusas características do nosso tempo informativo está na forma totalmente desproporcionada como se cobrem temas que deveriam merecer menos histeria coletiva e outros que justificariam mais destaque mas ninguém lhes concede. Não estou a falar de nenhum assunto exótico num sítio recôndito do mundo, mas das centenas de milhares de pessoas que, sem coletes amarelos, têm saído no último ano à rua em Budapeste, Varsóvia ou Bucareste, numa luta sem violência ou pilhagens por uma democracia muito mais saudável, pela separação de poderes, pela liberdade de expressão, contra leis permissivas à corrupção, na defesa intransigente do vínculo identitário europeu e dos valores da União Europeia. São mesmo centenas de milhares de cidadãos que infelizmente nunca abrem noticiários como uma qualquer manifestação neonazi com um décimo da adesão, nem merece uma linha de solidariedade nesta Europa ocidental habituada a olhar para o mapa até Berlim. .No ano passado tive a sorte de presenciar vários desses momentos a leste, falar com muita gente, testemunhar o sentimento de isolamento que angustia muitos movimentos e partidos pró-União Europeia, cercados pela concentração de poder, pela cleptocracia reinante, pela arbitrariedade das decisões políticas. Dou-vos o exemplo romeno, país que merecia outra atenção estratégica da UE, pela localização, dimensão e proximidade cultural. Sorin Grindeanu, o primeiro‐ministro que liderou o executivo no primeiro semestre de 2017, fez passar um decreto de emergência já a noite ia longa, descriminalizando certas formas de corrupção até certo montante, levando mais de 400 mil pessoas à frente do Palácio Victoria, apesar das temperaturas gélidas do início do ano. As exigências eram claras: retirada do decreto, demissão do governo e renúncia do líder do partido no governo, Liviu Dragnea, um dos maiores beneficiários do diploma. Os romenos não só tomaram as ruas de imediato como alastraram os protestos a cidades pequenas que nem o fizeram quando Ceausescu foi derrubado, instigados por grupos da sociedade civil, pela Igreja Ortodoxa e pelo presidente Klaus Iohannis, que denunciou o decreto. Não houve líderes formais nestes protestos que se prolongaram por mais de três meses..A verdade é que a existência de instituições democráticas, eleições, poder judicial independente e imprensa livre não garantem a vitalidade de uma democracia. Muitas vezes, aqueles que chegam ao poder através de eleições tentam minar as instituições e inclinam‐se para a autocracia. Sociedades saudáveis só são possíveis quando as instituições democráticas existentes são apoiadas e regularmente verificadas por cidadãos ativos. É exatamente isto que a Roménia nos lembra. A iniciativa inverteu o processo e mostrou que há muito mais para lá da submissão e que partidos como o Save Romania Union, com uma agenda pró‐europeia, cosmopolita e o terceiro mais votado nas legislativas de 2016, podem vir a ser fundamentais daqui a quatro, cinco anos. É preciso dar força a esta geração espontânea. No entanto, sem mediatismo e solidariedade europeia - como aquela que existiu nas décadas de 1970 e 1980, fundamental para a consolidação de democracias como a portuguesa - estarão à sua sorte no meio das autocracias emergentes na Europa. .Na Polónia, antes e depois de a UE ter acionado o artigo 7.º do Tratado de Lisboa, a liberdade de imprensa vem caindo a pique nos índices internacionais. Limitar a participação de capitais estrangeiros tem sido uma parte da estratégia da chamada "repolonização", de forma a mudar a estrutura acionista dos principais media regionais, onde muita da política nacional se joga e onde está o político mais popular do país: o presidente da Câmara de Slupsk, Robert Biedron, gay assumido e membro do progressista Your Movement, partido fundado em 2010, e que pode ser candidato às presidenciais em 2020. Há mais Polónia para além das manifs de camisas negras e do absolutismo de Kaczynski. Porque não lhe damos a devida atenção?.Na Hungria, depois de mais uma semana em que dezenas de milhares de pessoas se manifestaram contra legislação absolutamente discricionária sobre direitos laborais e um sistema judicial no bolso de Orbán, já para não falar na defesa da liberdade universitária, em particular da CEU, ou na recusa da acelerada concentração de esforços entre os media afetos ao governo, quantas vezes vimos a defesa da democracia húngara abrir noticiários, ter títulos em primeiras páginas, debates nas televisões, ou ser alvo de declarações de solidariedade política daqueles que querem que a UE sobreviva dentro da grelha das liberdades inegociáveis? Porque hão de merecer mais atenção os coletes amarelos em Paris do que milhares de pró-europeus em Budapeste ou em Varsóvia? O que será preciso acontecer mais nestes países para que as instituições comunitárias e os partidos comprometidos com a integração espalhados pela Europa unam esforços na condenação efetiva e na derrota dos Orbáns, Kaczynskis, Dragneas, Ficos e Muscats que mancham as democracias liberais da União? Depois não nos queixemos se um dia destes eles forem a regra e não a exceção. .Investigador universitário