Reformas à portuguesa e o sol que deve brilhar para todos nós
Para quem não estivesse lembrado de que temos eleições à porta, o governo veio anunciar aumentos para a função pública. Há várias razões para a regra, com escassíssimas e extraordinárias exceções, de um governo em funções não ter um segundo mandato, mas, seguramente, a simpatia pré-eleitoral com os funcionários públicos é uma delas.
Desta feita, há alguma sofisticação no anúncio e, munindo-me de toda a boa vontade do mundo, propósitos defensáveis e até muito desejáveis: a tentativa de melhorar a qualidade dos servidores públicos e o seu desempenho.
Como ninguém pode negar que os salários mínimos e médios são mais elevados no setor público do que no privado e que todos os funcionários públicos têm mais estabilidade no emprego, maior proteção social e até trabalham menos horas, também é inegável que em cargos superiores e de maior responsabilidade os quadros do Estado são manifestamente menos bem pagos do que na atividade privada - há, no entanto, carreiras que são relativamente bem pagas, como é caso dos professores e profissionais da área da justiça.
Apesar de o salário não ser a única variável a ter em conta para um quadro qualificado ir para a função pública, não é também, longe disso, um fator despiciendo. É fundamental também que estes profissionais tenham uma reforma profunda nas suas carreiras e na forma como são avaliados. O mérito é secundarizado face ao tempo e os critérios estão longe de ser objetivos.
Num Estado com tantos problemas de funcionamento, com problemas de produtividade evidentes, a captação de quadros competentes e qualificados é urgente. E aqui é fundamental lembrar que um Estado que funcione em todas as suas áreas é vital para o desenvolvimento do país não só no que diz respeito aos serviços que presta diretamente aos cidadãos, mas também na influência que tem no apoio aos criadores privados de riqueza.
Para início de conversa, não se entende bem como se fala de melhorar a qualidade dos profissionais para que o Estado funcione melhor e exista um acréscimo, depreende-se, de produtividade e se anuncia ao mesmo tempo um aumento de funcionários públicos. Onde estão os estudos que dizem que há falta de funcionários públicos? Onde estão os estudos que dizem que devem ser contratados para este ou aquele setor? Não existirão áreas com demasiado pessoal e outras deficitárias? A bem da verdade, sou dos que pensam que a nossa função pública está envelhecida, pouco motivada e com evidentes faltas de pessoal em vários lugares, mas não se pode fazer reformas com base em perceções, aumentando o número de funcionários, fazendo crescer salários e esperar que tudo fique bem. Melhor, pode fazer-se, mas, na melhor das hipóteses, fica tudo na mesma.
Mais uma vez, vai-se contratar utilizando o coeficiente de queixos ou então o simples coeficiente eleitoral. Reformas à portuguesa...
Vamos, no entanto, dar de barato que as intenções para melhorar o desempenho dos quadros são as melhores e vamos, pela enésima vez, respirar fundo e admitir que, mesmo não havendo estudos que suportem a decisão de aumentar o número de funcionários, vai haver o mínimo de bom senso. Ou seja, esperemos um milagre.
Há ainda uma questão de mera justiça social que também tem consequências no desenvolvimento económico do país.
Não se pode esquecer quem foram os mais prejudicados pela crise económica: os trabalhadores do setor privado. Não há estudo que não o prove. Empresas que faliram, emigração forçada, desemprego em massa. Não contando com os que, por questões de idade, não puderam regressar ao mercado de trabalho, sabemos que quem conseguiu fazê-lo teve o seu salário seriamente diminuído e a carreira interrompida. Os cortes salariais a que foram sujeitos os trabalhadores na função pública não têm comparação com os sacrifícios que foram impostos aos do privado. No entanto, foram eles que suportaram o tal aumento brutal de impostos ou, pelo menos, os que mais sofreram com o dito.
Foram também eles e as empresas os que mais fizeram pela recuperação da economia.
Se não se põe em causa a justiça das reposições salariais na função pública também é de justiça que os trabalhadores do setor privado e as empresas vejam a sua situação melhorada. E isso não só deve ser feito através da melhoria dos serviços prestados pelo Estado (que, para ainda mais prejudicar a situação, pioraram e não dão sinal, longe disso, de melhorar) como pela via fiscal. Uma carga de impostos que continua a asfixiar a economia, a condicionar o investimento e a não ajudar as empresas que na procura de outros mercados tanto fizeram pela recuperação do país.
Não só seria de inteira justiça como permitiria às empresas maior capacidade de investimento e aos cidadãos mais possibilidades de poupança e de melhoria de condições de vida.
É evidente que privilegiar o setor público corresponde a uma opção ideológica e essa será julgada eleitoralmente, mas neste momento não é só injusta como errada em termos económicos e sociais.
Separar os agentes dos que simplesmente erraram
Por esta altura, com base em documentos, sabemos que o contrato entre a Caixa Geral de Depósitos e a Fundação Berardo não estava dependente da aprovação do Banco de Portugal e que as garantias do empréstimo iam muito para além das ações que estavam a ser compradas, incluíam todo o património da fundação, que excedia, e em muito, o valor de 350 milhões de euros - o valor do empréstimo. Esqueçamos coisas como títulos a garantir que Vítor Constâncio autorizava o levantamento de dinheiro, imaginárias presenças em reuniões e até patetices do género de o Estado de direito e a lei só serem para respeitar às vezes. Desprezemos o facto de que os que agora gritam que aquilo foi um escândalo escreviam artigos a elogiar Berardo e o convidavam para estúdios de televisão. Se é fácil perceber que há gente que está a ajudar Berardo numa estratégia que visa defender o património que deu como garantia, não consigo compreender o que leva jornalistas sérios e com provas dadas a não fazer uma coisa simples: pedir desculpa e admitir os erros cometidos. Não há quem não os faça. Não só era o passo certo a dar como permitiria separar quem está de boa-fé dos outros.
Para a Luísa e o Miguel Duarte
A minha sobrinha Luísa está em Lesbos. É médica, tem tido uma vida boa e privilegiada. Está há quase um ano a tentar ajudar refugiados que chegam todos os dias mortos de fome, de frio e de medo. O dia-a-dia dela é fazer o que gente como eu instalada nas suas poltronas confortáveis se limita a proclamar com frases mais ou menos bonitas. Não precisava de ter este exemplo na minha família para ficar revoltado com o que está a acontecer ao Miguel Duarte, um rapaz da idade dela que também dedica a sua vida a salvar os mais desesperados de nós. Mas, com vergonha, confesso que talvez não sentisse tão profundamente esta vilania se não tivesse a Luísa nessa luta e não soubesse pela boca dela os horrores a que assiste todos os dias. Somos assim, demasiado frios para problemas realmente importantes mas distantes e empenhados para guerrinhas de alecrim e manjerona da paróquia. Valham-nos os nossos heróis. Valham-nos os Miguéis e as Luísas.