E se um liberal numa tarde de verão num balcão 

Nesta semana levei o meu liberalismo à inspeção. Cheguei à loja, que é um balcão mas chamam loja, e esperei. Esperei. Um casal de brasileiros queria internet para a segunda casa, trataram a menina muito bem, perguntaram tudo três vezes e ela explicou tudo três vezes, derretida. Um casal português queria devolver o telemóvel, que ficava tudo preto, quando devia dar, e não dava, ou dava um bocado e depois voltava tudo à mesma, à mesma que presumi ser o ecrã preto, queriam o dinheiro de volta mas faltava um código, falta sempre um código. Ela tinha uma tatuagem fina no longo pé direito, uma planta que saía e enrolava pelo calcanhar com a subtileza possível de uma hera massacrada pelo V de chanata. E mesmo antes de mim uma mãe com uma filha, melancolicamente apocalípticas, a internet tinha acabado e queriam mais internet no telemóvel para as férias, iam para a terra (a internet no telemóvel como forma de prevenção do suicídio adolescente). Todos resolveram os seus problemas, com aquela satisfação que dá resolver um problema num balcão numa tarde de verão sem ter de voltar.

Quando chegou a mim, ou eu a eles, ou melhor nem eu a eles nem eles a mim, porque o que chegou foi a senha, o 61, com três números de tolerância, clinc 61, quem é o 61, como nas chamadas nas prisões. Boa-tarde, diga. Quero pagar menos. Muito bem, por menos um euro pode ficar com mais isto e aquilo. Mas eu não quero mais isto ou aquilo (é sempre mais telemóveis com chamadas ilimitadas, como se se pudesse falar ilimitadamente mais do que uma vez), quero só igual e pagar menos, se possível. Muito bem, só consultar a ficha, pode só confirmar o contribuinte, muito obrigado, desculpe estou só a ver melhor a ficha mas o sistema hoje está lento. Ora bem, vou então pedir ao colega que lhe ligue, que nós aqui ao balcão não podemos fazer nada, só reencaminhar para eles e eles depois lá tratam consigo. Vou só inserir (a praga do inserir e do colocar, tudo é inserir ou colocar, já ninguém escreve, põe, ou mete, tudo coloca insere e introduz). Colocaram o pedido, e eles ligaram logo. Era um ele, muito bem estou só a puxar a ficha, apetece-me sempre dizer não puxe que desliga, mas não tem muita piada, veio a ficha, sim senhor João, ora com o plano que tem podemos dar um desconto de... €18,27. Podemos avançar. Avancemos. É tão bom avançar, seguir em frente, deixar para trás, ainda mais com as coisas tratadas num balcão de verão, que já nem foi no balcão, foi ao telemóvel que é uma espécie de balcão.

Também passei pelo seguro de saúde, mas aí a história foi diferente. Ia saindo de lá a pagar mais, convencido de que sou um péssimo pai e marido (ou esposo, citando). E arrisquei mesmo ter de subscrever um cancro daqueles mauzinhos só para não pôr (ou colocar) em causa as coberturas existentes. E se, dizia ela. O seguro é para o e se. E se há cada caso, quimioterapias interrompidas a meio e tudo recambiado para os hospitais públicos porque esgotaram o plafond e não tiverem dinheiro para recarregar, que isto não é como a internet da mãe e da filha da senha 60, é aos oito mil euros de cada vez, cada tratamento, ora se tiver de fazer quinze veja lá. Para poder sair, sem o cancro, ou mesmo uma doença grave, mas que só incluí cancros muito lá à frente quando já não há nada a fazer (sic), disse mandem-me tudo por e-mail que eu analiso (juditchi). Tem de perceber que é um seguro, no fundo é como no seguro da casa, está protegido contra queda de aeronaves, mas sabemos que não nos vai cair um avião em casa. Não é? E eu a dizer que sim, disse que sim a tudo, desde que não me pedissem para assinar nada era essa estratégia. Abaixo dos cem mil nem vale a pena. Concordei. E se um dia precisar, vamos dizer, de arranjar os dentes depois de uma quimioterapia, aqui não entra, tem de mudar para este onde pode ir até um milhão, mesmo estomatologia. Concorda? Sim, mas nós costumamos ir aos hospitais públicos porque... Cada um faz o que quer, senhor João, não estamos a criticar. Mas está a ver eles a usar, voltando ao exemplo do cancro, a quimioterapia mais cara? Ah pois. Pois, enviem tudo.

O regateio contratual é o teste do liberal que por mais que não goste da ideia de andar a pagar mais sem necessidade, e por mais que abomine a ideia do se estivesses estado calado continuavam a roub... exigir-te a mensalidade contratualmente estipulada, mesmo assim tem de admitir que este sistema é melhor do que todos os outros em que se possa pensar, em que os consumidores não têm de acautelar os seus interesses, em que não há preços livres, em que não há lugar a renegociação, em que não há alternativa. A coexistência de prestação privada e pública de cuidados de saúde é fundamental, e Portugal muito ainda precisa de aumentar o seu investimento em saúde, e a prestação privada também tem esta vantagem de obrigar a falar, pensar e ver o custo das coisas, mesmo que no remoto e se.

A liberdade económica é sempre melhor do que o resto e seu contrário. Mas convém ir levando o liberalismo a inspeção, passeá-lo por esses balcões numa tarde de verão.

Jurista

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