Sri Lanka. Um "burgher" no Hotel do Chá

Mala de viagem (168). Um retrato muito pessoal do Sri Lanka.

Instalei-me no hotel com a esperança de vir a ter uma boa história para contar. O cenário romântico no meio de uma plantação de chá verde tornava-se no local perfeito para descontrair. Há por perto a fábrica como atrativo acrescido. No Hotel do Chá, encontrei um suposto descendente de portugueses, que foram os primeiros europeus a chegar ao Ceilão. Nesses tempos, quando estes se acercaram sob o comando de D. Lourenço de Almeida, encontraram a ilha numa guerra civil. Os nativos foram incapazes de se defenderem das forças organizadas portuguesas. Foram estes que, também, fundaram a cidade de Colombo, em 1517, estendendo ao longo dos anos o domínio sobre as restantes áreas costeiras. Para se tentarem defender, os habitantes mudaram a capital para um local menos acessível, Kandy. A era medieval no Ceilão chegava ao fim, dando início à era moderna e com a influência dos povos europeus. Em 1602, os holandeses chegaram ali, tendo o rei de Kandy pedido auxílio para se livrar dos portugueses. Em 1660, o Império Holandês controlava já toda a ilha, excepto o reino de Kandy, tendo os portugueses sido expulsos daqui (1658). Apesar disso, a influência portuguesa ainda hoje se faz sentir no Sri Lanka, onde se podem encontrar algumas famílias com apelidos de origem lusa. Logo que entrei e mostrei a minha identificação ao rececionista, este disse-me que um dos cozinheiros tinha um apelido português e que disso fazia gala. Fiquei curioso, talvez ali estivesse a começar a história que eu ambicionava. No final desse dia e já depois do jantar, durante o qual, antes, fizera um passeio pelas redondezas verdes da plantação, chegou junto de mim um jovem alto de tez mais clara do que os restantes. Saudou-me com um "boa-noite!" (em português), embora logo me dissesse que sabia poucos termos. Vaas apresentou-se como "burgher" português, um termo derivado do holandês e utilizado para definir as comunidades do Sri Lanka com descendência europeia. Se bem que a língua portuguesa tivesse sido proibida a partir da tomada dos holandeses, a comunidade portuguesa que restou manteve a herança, a tal ponto que houve holandeses que passaram a falar português e casamentos entre os dois povos. De 1796 a 1948, o Sri Lanka esteve sob o domínio britânico, quando começou a marcar o declínio da comunidade dos "burghers" portugueses, que já era uma minoria aquando da independência do Sri Lanka. Vaas explicou que há uma semelhança de termos entre o crioulo dos "burghers" e o português, e algumas palavras são iguais, como "rosa": "A minha filha chama-se Rosa, precisamente por essa razão." E explicou a origem do seu próprio apelido: "Vaas provém de Vaz, um apelido português, mas há outros que respeitam a grafia original, como Silva", esclareceu-me. Ele veio de Batticaloa, no lado oriental da ilha. Contou-me que é habitual ver Nilenthi Nimal Siripala de Silva, ministro dos Portos, Navegação e Aviação Civil: "Ele é membro do Partido da Liberdade e do Parlamento, representando o distrito de Badulla." Nilenthi de Silva é advogado de profissão, formado no Reino Unido. Ele é o presidente da Assembleia da Organização Mundial da Saúde. É, porventura, o mais destacado descendente de portugueses no Sri Lanka, mas eu estava ali perante o que eu considerava o mais relevante, Vaas, que me preparou o jantar desse dia e não deixaria por mãos alheias as próximas refeições. E confessou: "Não é comum termos portugueses neste hotel. É privilégio para mim tê-lo entre nós." E explicou-me o que eu comera ao jantar. Foi "polo", ou seja, um caril de jaca. Os pratos de caril são muitos e existem em todo o país. A jaca ("jackfruit", em inglês) é cortada aos pedaços e cozinhada com várias especiarias, assemelhando-se à textura da batata cozida e com uma cor acastanhada. O prato tinha arroz de acompanhamento e caril de lentilhas. De sobremesa, fui obsequiado com umas panquecas de coco, os "wellawahum", uma espécie de crepes recheados com uma mistura de coco e açúcar. A maior das surpesas foi o vinho. Deram-me a provar uma produção própria, que só tem benefícios para a saúde, ou seja, reduz e controla o reumatismo e a artrite, aumenta o apetite, é muito eficaz contra o colesterol e controla a pressão sanguínea. Afinal, vim à terra do chá e encontrei esta "milagrosa" pinga que mais parece um "spa". Porém, o chá estava a chegar num bule, como convém. Vaas informou-me de que aquele chá era digestivo e próprio para aquela hora. Eu pensei que, para uma melhor preparação para a vida, nada há de melhor do que uma boa digestão.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG