A morte do Príncipe (2)
Dormia há muitas horas, ninguém ousou acordá-lo. Na véspera, tivera um jantar memorável, o célebre jantar de que sempre se fala quando se fala da sua morte, a morte do Príncipe. Por vezes com contornos exagerados, muitos descreveram o ágape de 31 de Dezembro de 1995 como um festim selvático, próprio dos rituais da despedida, igual às últimas ceias dos presos a aguardar a execução. Dizem que foi uma orgia em que ele comeu uma trintena de ostras, montanhas de foie gras, um generoso naco de capão e, a terminar, duas pequenas aves. Garantem outros, como Jack Lang, que ele foi frugal e contido, que não se entregou às habituais competições de ingestão de ostras, que se limitou a beber um pouco de vinho branco, mordiscar aqui e ali, pouco mais.
A questão, porém, é outra: naquele jantar, o ágape célebre e memorável, François Mitterrand, comeu um dos seus pratos dilectos, as sombrias ou hortulanas, aves ameaçadas de extinção que há décadas as associações ambientalistas francesas lutavam por proteger. Já na altura era terminantemente proibido comerciar essas avezinhas de cabeça verde e ventre vermelho, Emberiza hortulana, que enchem as montanhas com os seus trinados primaveris, e seria necessário um livro inteiro só para narrar as peripécias que as levaram até à cozinha da casa de campo de Latche, nas Landes, um trepidante affaire político-gastronómico em que estiveram envolvidos o filho do ex-presidente, o seu editor, Odile Jacob, antigos ministros da República, deputados socialistas, altas figuras dos negócios e das artes, como Pierre Bergé, o patrão da Yves Saint Laurent, tudo para satisfazer os caprichosos desejos de um grande homem moribundo. Para mais, mandam as regras que as hortulanas sejam degustadas de uma forma muito peculiar, com um pano ou um guardanapo largo a tapar a cabeça do comensal, para que este possa absorver, sem perder pitada, os aromas próprios da iguaria raríssima, devendo tragar-se o bicho todo, cabeça, vísceras e tudo, para no fim restar apenas o bico, deixado na borda do prato em sinal de triunfo carnívoro. Naquela noite de final de ano, Mitterrand devorou duas avezinhas, mas, segundo Jack Lang, não teve forças para comê-las de acordo com a velha tradição, à bruta, tendo o ex-ministro da Cultura que lhas cortar em pedaços, segurar o garfo e quase dar-lhas à boca.
No dia seguinte, levantou-se já passava das três da tarde. Não quis comer, só bebeu chá, e uma sopa à noite. Os amigos prepararam-se para partir, ele despediu-se de cada um deles com uma mensagem final, dizendo a Jack Lang, por exemplo, que não deveria jamais deixar-se seduzir pelos radicais, que era um líder socialista e que assim tinha de permanecer para sempre. Depois, ficou só, no silêncio do escritório escuro. O filho Gilbert também se foi despedir, não sabendo que nunca mais voltaria a vê-lo vivo. Contou-lhe que a mulher estava grávida, ele ficou encantado e começou logo a sugerir nomes para o bebé - Guilherme, Cornelius, Thomas -, cada qual justificado em homenagem a uma personagem histórica, Guilherme por causa de Guilherme de Orange e por aí fora, ou não tivesse ele feito o mesmo com os seus próprios filhos: Pascal, o primogénito, falecido prematuramente em 1945; Jean-Christophe, devido ao livro de Romain Rolland; Gilbert porque, segundo o pai, era um nome usado na família Mitterrand desde o século XVI; e Mazarine, que, sendo filha da amante, mereceu nome de cardeal. Ao sugerir nomes para o futuro neto, não lhe ocorreu sequer que pudesse ser uma menina. A criança nasceria exactamente seis meses depois da sua morte. Um rapaz. E, seguindo o seu conselho, chamaram-lhe Guilherme, como o príncipe neerlandês da casa de Orange-Nassau (o pai de Guilherme foi deputado socialista de 1981 a 1993, é presidente da Fondation Danielle Mitterrand - France Libertés e administrador vitalício do Instituto François Mitterrand).
A 2 de Janeiro, sentiu uma vontade súbita de regressar a Paris. Na urgência, voltou num jacto privado, fretado para o efeito, pois as linhas comerciais estavam saturadas com a azáfama do Ano Novo. Deu entrada de imediato no hospital para fazer análises, mas não foi necessário aguardar pelos resultados para que ele soubesse o veredicto: as metástases tinham alcançado o cérebro. Chegara enfim o momento de morrer a sua própria morte. Recusou as sugestões do seu médico assistente, o doutor Tarot (e que o médico assistente de François Mitterrand tivesse um nome igual ao do jogo de cartomancia de Marselha nem é dos pormenores mais estranhos daqueles dias tão estranhos), e seguiu o conselho da sua amiga Marie de Hennezel, especialista na arte de morrer: no instante decisivo, não lutar mais, deixar-se abandonar ao destino e à progressão da doença. Incapaz de regressar aos passeios no Champ-de-Mars, fechou-se no quarto do apartamento da Rue Le Play, onde recebeu uma última visita do seu especialista de medicinas naturais, Philippe De Kuyper, mas agora era tarde para pílulas homeopáticas; e do doutor Tarot aceitou tão-só uma perfusão relaxante, nada mais.
Foi por essa altura que tratou de um documento fundamental: aditou ao testamento feito anos antes, em Setembro de 1992, um codicilo em que cuidava do futuro de Mazarine, até aí ausente da sua vida oficial. A mãe, Anne Pingeot, já era comproprietária da casa de Gordes, a filha recebia agora o legado mais precioso: além dos papéis pessoais, os livros raros de uma biblioteca imensa, cultivada com esmero e paixão por um bibliófilo de cinco décadas, um amante de primeiras edições e belas encadernações de luxo. Danielle, com quem estava casado em regime de comunhão universal de bens, ficou com a casa de 250 metros quadrados da Rue de Bièvre, com a propriedade de Latche e os seus vários hectares de floresta, com os direitos de autor dos seus livros, com a conta conjunta no Crédit Lyonnais. E com as jóias, ainda que as melhores e mais caras tenham ido para Mazarine, que também ficou com o mais importante de tudo, os direitos morais pela sua obra, o que a tornou guardiã e senhora do pensamento de François Maurice Adrien Marie Mitterrand, seu pai oculto durante duas décadas.
Nesse mesmo dia, 4 de Janeiro de 1996, dedicou-se à escrita, cartas de despedida para alguns eleitos. Entre eles, Jean d'Ormesson, que, apesar das divergências de política e de ideologia, partilhou os seus últimos momentos, com Mitterrand a querer fazê-lo o cronista oficioso desses dias estranhos. Ainda tomaram um pequeno-almoço para discutir o assunto, mas um reencontro falhado e as circunstâncias da vida impediram a concretização do projecto. Os outros candidatos não estiveram à altura da empresa: a Georges-Marc Benamou faltava a densidade dos grandes memorialistas, Jean Lacouture não tinha o tempo necessário ao ofício de historiador de detalhes. O Príncipe partiu, assim, sem que lhe registassem as palavras - e a sabedoria peculiar dos leitos de morte. "Ça va" terá sido o último dito. Palavras pouco grandiosas e inspiradoras, até vulgares, por certo muito diferentes daquelas que sonhara legar à posteridade, e que nunca saberemos quais eram.
Pressentindo o desfecho iminente e trágico, muitos precipitaram-se sobre a casa da Rue Le Play, mas ele, enrolado como um molusco, não quis receber ninguém. Danielle, que decidira sagazmente ficar em Latche, para que a agonia dele não fosse disputada pelas suas duas mulheres, ia sendo informada telefonicamente pelo doutor Tarot, por amigos do casal ou pelos filhos. Jean-Christophe chegou-lhe ao leito, perguntou se sofria muito, ele respondeu aos gemidos: "como um cão..." para acrescentar, num último lampejo de ironia, "como dois cães...". Gilbert falava várias vezes ao dia com a mãe, que lhe ia fornecendo notícias dadas pelo próprio marido ou por Tarot, que esteve ao seu lado do primeiro ao último minuto.
No dia 6 de Janeiro, François Mitterrand mandou chamar André Rousselet, seu antigo chefe de gabinete que lhe tratava do claro-escuro das finanças, empresário fundador do Canal Plus, a quem confiou a delicada tarefa de executor testamentário. Já na altura mal conseguia falar, uma irritação na garganta impedia-o de deglutir. Na conversa com Rousselet, ficou patente a sua preocupação com o futuro de Danielle, e o certo é que, contrariando os rumores de corrupção, as finanças do casal não eram faustosas, longe disso (mas também não eram a pobreza franciscana que outros tentaram fazer crer). Na véspera, escrevera a Hosni Mubarak, agradecendo-lhe a hospitalidade em Assuão, missiva que o presidente egípcio só lerá depois de ele morrer. Em Latche, Danielle também escrevia: notas, apontamentos, confissões publicáveis. Apontava os telefonemas desesperados do doutor Tarot, em que este advertia para o fim à espreita, apontava os sons da chuva que caía sobre a casa. Dizia, em remate triste: "François ne meurt pas."
Último dia, 7 de Janeiro. Domingo, Paris silenciosa e dormente, indiferente à agonia daquele a quem o génio publicitário de Jacques Séguéla chamou "la force tranquille" e que, na preparação da campanha eleitoral, o fez limar os caninos para perder a aura vampiresca e ganhar um aspecto mais amigável e familiar para os votantes. Ignorando o que se passava, o mundo mostrava-se indiferente à agonia discreta do homem que dizia preferir o cinzento ao preto e branco das coisas, do senhor "ni-ni" capaz de compromissos impossíveis, daquele que erguera o euro numa sábia negociação com a Alemanha, irmã inimiga. Do homem que criara a "doutrina Mitterrand", acolhendo na França livre os terroristas vindos de Espanha, para depois negociar com Madrid apreciáveis vantagens comerciais no mercado comum, a troco do incremento da perseguição à ETA. Etarras por quotas pesqueiras, tudo se negociava então no grande bazar de Bruxelas.
O testamento é entregue num envelope ao doutor Tarot, Danielle chega entretanto da casa de campo nas Landes. Gilbert apanha o TGV às pressas, mas aparece tarde demais. Sozinho na penumbra do quarto, com a clepsidra da glicose a gotejar os instantes derradeiros, François Mitterrand recusa a entrada à mulher e aos filhos. Ficara impressionado com a horrível morte de Estaline, escrevera sobre ela em 1977, não queria que o vissem também num estado deplorável, não queria que aquela fosse a última imagem que guardariam dele, o Príncipe. Jean-Pierre Tarot, a braços com o cadáver iminente do ex-presidente de França, liga a tudo e todos, falando com Henri Emmanuelli, nas Landes, um homem que tivera papel decisivo na compra clandestina das hortulanas para o ágape célebre e memorável, a última ceia do seu chefe. Tarot tenta contactar Marie de Hennezel, a sacerdotisa da morte, mas ela não atende, fica o recado no gravador: "As coisas começam a ficar preocupantes. Até já."
Em férias na Martinica, Marie procura devolver a chamada, liga vezes sem conta para o apartamento da Rue Le Play, mas ninguém atende. Na véspera tivera um sonho premonitório, em que Mitterrand, prestes a morrer, lhe diz "vous savez comment me retrouver", uma frase que num livro de Vítor Hugo designava as orações a Deus. Também ele rezava muito, ou assim parecia. Tinha o hábito de permanecer sozinho, em total silêncio, nas igrejinhas e capelas de província. Fazia-o mesmo em campanha eleitoral, o que obrigava o seu staff a malabarismos de dissimulação, tudo para esconder que o líder socialista e laico passava horas a fio no interior de templos católicos, vazios de gente mas não de Deus. Mitterrand nunca iludiu, de resto, a sua ligação profunda à Comunidade de Taizé e a sua grande amizade por Frère Roger, sendo também conhecido o seu apreço pelo Livro Tibetano dos Mortos, lido a conselho de Marie de Hennezel. Desprezava, isso sim, a hierarquia da Igreja e o clericalismo em geral, mas teve sempre uma devoção difusa, indiscutivelmente sincera, por São Francisco de Assis e por Santa Teresa de Lisieux, cujos restos mortais tinham sido trazidos, poucos dias antes, em Dezembro de 1995, para a Igreja de São Francisco Xavier, nas imediações dos Invalides, não muito longe do apartamento da Rue Le Play. Quando o cortejo processional estava de regresso à Normandia, fez uma paragem na morada derradeira do ex-presidente socialista, que aguardava no passeio e pousou as mãos no féretro engalanado da santa, em breves instantes de meditação, um momento estranhíssimo desses dias tão estranhos.
No seu testamento, tinha escrito, no habitual jeito críptico e elusivo, que "será admissível uma missa" e tratou da logística aos mais ínfimos pormenores, especificando, por exemplo, que o caixão deveria ser transportado aos ombros por gendarmes do antigo esquadrão presidencial. Tivera a ambição imperial de morrer no Egipto, em grande estilo, mas o destino fez que os últimos momentos fossem passados na morada que o Estado francês pusera à sua disposição, o apartamento impessoal e asséptico da Rue Frédéric Le Play, um economista do século XIX que se notabilizara por estudar as condições de vida miseráveis das classes trabalhadoras. Anne Pingeot, a amante, recolheu-se a um lugar discreto quando a mulher e os filhos o foram ver para a despedida. Mesmo agindo contra a sua vontade, Danielle entrou no quarto, leu o recado que Gilbert deixara para ele, pegou-lhe na mão, num silêncio interrompido apenas pelo lamento do Príncipe: "J'ai mal." Depois saiu, para escutar de Jean-Pierre Tarot como tudo se passara naquela semana fatídica em que ela sagazmente optou por ficar nas Landes.
Começou então a última noite, a noite em que François Mitterrand, antigo presidente da República de França, se reencontrou com as palavras do seu amado Pessoa, que, em A Morte do Príncipe, escreveu:
Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e os rios ao longe, e montanhas... Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou ficar, e de onde estar e de que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra cousa que estou a ver se vejo. Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora que estou entre o que não fui e o que não serei?
Por volta das onze horas, pediu a extrema-unção a Tarot, que lha ministrou após ele ter solicitado que aguardasse um minuto, só mais um minuto. Morreu durante o sono por volta das oito horas da manhã de segunda-feira, 8 de Janeiro de 1996. Ça va. Um ano antes, tinham-lhe perguntado o que diria quando estivesse na presença de Deus. Aquele a que a imprensa chamava Dieu, respondeu apenas: "Por fim, eu sei."
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.