Alcoolismo na pandemia
Amigos me ligam para dizer que, trancados em casa por causa da pandemia, temem estar bebendo além da conta. Tenho certa experiência no assunto e sei que nenhum bebedor, seja ele problemático ou recreativo, fala a verdade a respeito de quanto bebe. Alguns, para se gabar, gostam de exagerar o consumo da noite anterior. Outros, ao se sentirem cobrados pelo que beberam nessa mesma noite, tendem a diminuir o número de doses que mandaram para dentro. Mas, quando alguém admite que teme estar bebendo além da conta, não há mais nada a temer - ele já está bebendo além da conta.
Outra constante nessa admissão dos amigos é que, ao descrever uma jornada alcoólica mais animada que tenham protagonizado nos últimos dias, já não o fazem com a tradicional memória eufórica, mas com um toque de culpa - principalmente porque, com o confinamento, as garrafas vazias se acumulam às vistas da família, que pode enfim contá-las. E, ao fazer isto, ela se assusta porque não sabia da capacidade de seu marido ou mulher, irmão ou irmã, de ingerir tantos litros de uma assentada. Nos bons tempos pré-pandemia, isso não era sequer suspeitado, porque ele/ela podia beber apenas "socialmente" em casa, deixando o grosso do consumo para os bares e restaurantes que frequentava.
É verdade que, na situação atual, não faltam explicações para o súbito consumo de álcool além da conta - todos falam em solidão, ansiedade, perdas financeiras, stress, medo da morte. É como se a aflição provocada por essas condições só pudesse ser aplacada pela ingestão de bebida em grandes doses. Mas os estudos sobre as alterações no consumo de álcool em outras crises no passado - atentados terroristas, guerras, desastres naturais, depressão económica - provam que o abuso do álcool é predominante em pessoas que já tinham problema com bebida.
Essa conclusão confirma inúmeras pesquisas feitas nos últimos 50 anos por instituições independentes, segundo as quais pessoas sem graves problemas emocionais tendem a beber em excesso tanto quanto as que têm problemas. Daí a certeza, para essas instituições, de que as pessoas não bebem porque têm problemas, mas, ao contrário, têm problemas porque bebem - o que quem convive com alguém nessas condições poderá facilmente atestar. E como explicar que muitas pessoas, passando pelas mesmas aflições provocadas pela pandemia, não estão apelando para a bebida? É porque a bebida lhes é tóxica, faz-lhes mal e o seu organismo não reage bem a ela - donde quem não é equipado organicamente para beber não beberá. Portanto, não acredite se alguém lhe vier com uma lista de motivos pelos quais está bebendo de mais. Não são motivos, são pretextos.
Devo saber o que digo por que, para mim, por duas décadas até 1983, beber foi uma rotina diária de glamoures e prazeres. Significava ser apresentado em Nova Iorque a marcas raras de uísque; descobrir no Rio as delícias da aquavita; provar cachaças de colecionador, oriundas de armários trancados a chave em remotos alambiques de Minas Gerais; e aproveitar longas temporadas na Europa, inclusive em Lisboa, para saborear vinhos de safras premiadas. E era raro beber sozinho. Ao redor dos copos e garrafas, havia balcões de madeiras nobres, paredes espelhadas, luzes frias e mulheres quentes - vivia-se em permanente estado de sedução. Entre um gole e outro, mots d'esprit sobre literatura, política ou jornalismo cruzavam o ar em três ou quatro línguas, tendo ao fundo, em surdina, canções de Cole Porter, Stephen Sondheim ou Tom Jobim. Beber, não importava quanto, apenas fazia parte da liturgia - o que contava era a vida ao redor.
Mas aconteceu que, em meados de 1983, um súbito desaire profissional - uma demissão, um mercado em crise e certa dificuldade para encontrar nova colocação à altura - fez que eu ficasse parado durante meses. Sem responsabilidades a cumprir, estacionado em casa e com mais tempo para beber, bebia. Não por estar deprimido ou apreensivo - em nenhum momento duvidei de que, em algum momento, estaria de novo bem empregado (o que aconteceu). Bebia porque não me faltava bebida e porque não tinha melhor a fazer. E o que, até então, fora um exercício voluntário e lúcido, apesar de constante, tornou-se um imperativo alheio à minha vontade. Algo começou a me fazer beber cada dia mais cedo e em maior escala. Era a dependência - que, durante anos, já se insinuava e, finalmente, tomava conta.
Nos cinco anos seguintes, até 1988, o antigo cenário de glamour e prazer foi progressivamente substituído pelo beber solitário, a qualquer hora, em qualquer ambiente, em qualquer companhia e, não por último, pelo beber qualquer coisa. E isso não obedeceu a um declínio financeiro ou profissional. Seguiu apenas uma equação formulada havia séculos pelos chineses e que aprendi com F. Scott Fitzgerald, mas nem eu nem ele levámos a sério: primeiro você toma um drink; depois, o drink toma um drink; por fim, o drink toma você. O resultado, este, sim, é o declínio financeiro, profissional e de tudo mais.
Ouço meus amigos ao telefone e me preocupo. Com a maior oportunidade para beber oferecida pela permanência em casa, o abuso pode estar levando à dependência pessoas que, até então, tinham só uma tolerância acima do normal para o álcool. Na dependência, como se sabe, já não se bebe pelo prazer, mas para não se sentir muito mal - porque o organismo não tolera mais viver sem o produto.
Sei bem que essas coisas são delicadas e difíceis de tratar. Mas há um jeito de uma pessoa se certificar se ela própria ou alguém próximo corre risco de dependência. É só observar se, a cada dia, a primeira garrafa é aberta mais cedo.
E, ah, sim, aquela minha história. Em 1988, tratado por profissionais, deixei de beber. Foi há 32 anos e, desde então, tento continuar assim. Até hoje, tenho conseguido.
Jornalista e escritor brasileiro