Amazónia a arder. "Quer que eu culpe os índios, marcianos?", diz Bolsonaro
As opiniões dividem-se: Jair Bolsonaro, que se autodenominou, ironicamente, Capitão Motosserra e Nero nos últimos dias, acha que não tem responsabilidade nenhuma nos incêndios que alastram pela Amazónia e vão deixando cidades às escuras a meio da tarde e obrigando voos a desviarem a rota por falta de visibilidade, entre outros efeitos; já institutos do governo da área ambiental encontram relação entre as políticas do ministério do meio ambiente, de incentivo ao desmatamento, e o aumento, em 83%, dos incêndios de 2018 para 2019.
Na escalada de argumentos ao longo do dia, Bolsonaro chegou até a avançar com a possibilidade de terem sido organizações não governamentais (ONG) a atear fogo na floresta. "O crime existe. Temos de fazer o possível para que não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONG, 40% ia para ONG. Não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro. Então pode, não estou afirmando, ter ação criminosa desses ongueiros para chamar atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil", acusou o chefe de estado.
Em conversa com jornalistas à saída do Palácio da Alvorada em Brasília, Bolsonaro reafirmou a acusação esta quinta-feira de manhã. "Quer que eu culpe os índios? Quer que eu culpe os marcianos? É, no meu entender, um indício fortíssimo que é esse pessoal de ONG que perdeu a teta deles, é simples", afirmou.
O presidente admitiu até que a culpa pelos incêndios pode ser dos fazendeiros, garantindo: "Todo o mundo é suspeito. Mas a maior suspeita vem de ONG".
Quanto às provas, admitiu não ter. "Não se tem prova disso. Ninguém escreve isso 'eu vou queimar lá'".
Na véspera, justificara o alto número de incêndios na floresta com a estação: "É a época da queimada por lá..."
O ministro do Ambiente, Ricardo Salles, por sua vez, atribui "ao tempo seco, vento e calor o aumento dos incêndios em todo o país". "O resto são fake news e sensacionalismo", disse. Pelo Twitteranunciou ainda que "os membros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, além de equipamentos e aeronaves, estão integralmente à disposição dos estados e já em uso". O jornal O Estado de S. Paulo noticiou, entretanto, que o dinheiro usado para combater os fogos vem da verba destinada por países europeus para preservar a Amazónia, mesmo depois de o presidente ter afirmado que o Brasil não precisava desse valor, numa troca de farpas com os governos alemão e norueguês.
Na manhã de ontem, o ministro foi vaiado durante o terceiro dia da Semana Latino-Americana e Caribenha do Clima, realizada em Salvador. Por causa disso, recusou-se a falar à imprensa presente e alterou a sua agenda.
Os especialistas, que se têm manifestado sobretudo por meio de comunicados oficiais, discordam de Bolsonaro e de Salles. "As chamas costumam seguir o rastro do desmatamento: quanto mais derrubadas, maior o número de focos de calor", escreveram os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (IPAM) em nota técnica. Levantamento do instituto aponta que os dez municípios amazónicos que mais registaram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento, na Rondónia, no Roraima, no Pará e no Amazonas.
"Todo o desmatamento gera uma queimada", diz Arnaldo Carneiro, pesquisador daquele instituto. O académico aponta o dedo a Bolsonaro também pelo enfraquecimento da fiscalização ambiental promovido pelo governo.
Para a ex-ministra do Ambiente (e três vezes candidata à presidência) Marina Silva o governo "é irresponsável". "A Amazónia está em chamas. O ministro do Meio Ambiente fala em fake news e sensacionalismo. O presidente diz que ONG podem estar por trás disso. A falta de compromisso com a verdade é uma patologia crónica. Essa atitude irresponsável só agrava a emergência ambiental no Brasil."
"Estamos vivendo um momento de barbárie ambiental no Brasil, promovida pelo governo Bolsonaro. O povo brasileiro, sua parcela sensível e consciente, deve responder em nome das gerações futuras, da Amazónia e de toda a natureza", disse ainda Marina.
O colunista Joel Pinheiro da Fonseca, do jornal Folha de S. Paulo, escreveu que "queimar o património ambiental parece ser projeto". "A população não deixa de corresponder ao discurso que vem de cima. No dia 10, fazendeiros e grileiros [pessoa que se apossa ilegalmente de terras] do sul do Pará promoveram um 'dia do fogo', produzindo queimadas em nível recorde."
Ainda segundo dados de institutos ligados ao governo, só nesta semana houve 68 fogos em terras indígenas e em unidades de conservação. No Parque Nacional da Ilha Grande, no Paraná, arderam 33 mil hectares, a Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, perdeu 12% da sua área, o Parque do Araguaia, no Tocantins, soma mais de mil incêndios neste ano.
Números do Programa de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que usa imagens de satélite para controlar os focos de calor no país, mostram o aumento de 83% no número de incêndios florestais no Brasil entre 1 de janeiro e 19 de agosto de 2019 e o mesmo período do ano passado.
Neste ano, o INPE já detetou 72 843 queimadas no país. No ano passado, foram 39 759. O Amazonas está em terceiro lugar no ranking das queimadas neste ano com 7003 focos de incêndio, 5305 apenas em agosto, até ao dia 19. Entre 2018 e 2019, o estado do norte do Brasil registou um aumento de 146% no número de incêndios florestais. Na Rondónia, o número de queimadas disparou 190%. O estado está desde o início de agosto coberto por fumo. Pelo menos dois voos comerciais com destino ao estado já foram desviados das rotas por falta de visibilidade pelo excesso de fumo. Mato Grosso, entretanto, é o estado com maior quantidade de queimadas: mais de 13 mil focos de incêndio já foram registados entre janeiro e agosto deste ano.
Os efeitos fazem-se sentir mesmo na região sudeste, em pontos a 2200 km da Amazónia, como São Paulo. Na última segunda-feira, na maior cidade do país, os quase 20 milhões de paulistanos assustaram-se por, a meio de uma tarde supostamente de sol, verem afinal o céu escuro, preto, como se estivessem no meio de um filme apocalíptico. Especialistas apontaram, no entanto, queimadas no Paraguai e uma frente fria como outras causas, além das queimadas, para o escurecimento dos céus.
Ao longo do dia de ontem, "Pray for Amazonas" (reze pela Amazónia) foi um dos assuntos mundiais mais comentados na rede social Twitter.