Mil e uma noites
A mera possibilidade de alguém se sentir ofendido por um discurso, um gesto, um argumento, e de, a partir desse sentimento, que é tão pessoal, lançar uma acusação ou campanha de desqualificação contra quem o proferiu ou ensaiou, constitui hoje um dos mais fortes limites e condicionantes do debate público. Não se trata de desconfiar de novas fronteiras para a linguagem, porque esse movimento sempre existiu e é indissociável da natureza humana. Nem se trata de ignorar o poder da palavra, a força que dela emana e que pode carregar ódio e amor que se transformam em gestos e lanças. E muito menos se trata de só ver a liberdade de expressão de quem primeiro opina, como se essa não valesse tanto quanto a liberdade de quem responde.
Trata-se de algo diferente, e crescente, que vem contaminando o debate público, desnatando-o, como que o encapsulando num vazio onde ecoam as mesmas ideias, circularmente e sem confronto, e que consiste basicamente no seguinte: se alguém se sentir ofendido na sua liberdade, na sua consciência, na sua identidade, por alguma palavra ou gesto ou argumento ou piada que, em dado momento, presente ou passado, alguém exprimiu, então tal só pode significar que essa pessoa quis ofender, discriminar, violentar - uma espécie de presunção inilidível.
Não interessa, para o efeito, que não tenha sido essa a intenção da pessoa nem que inexista qualquer outro comportamento que fundamente tal intenção: basta que alguém se sinta ofendido para que a intenção se presuma, a maldade se insinue, e só um pedido de desculpas possa retratar o gesto - tudo num clima de julgamento moral de intenções, em que cada perfil de redes sociais serve para atear uma fogueira onde queimar o infiel.
A última vítima deste estado de coisas foi Justin Trudeau. Em 2001, numa festa de temática árabe, Trudeau foi vestido de Aladdin, escurecendo a cara em conformidade com a personagem. A Time encontrou uma fotografia da festa e Trudeau, que vai agora a eleições, foi acusado de racista
"Durante toda a minha vida lutei contra o racismo e a discriminação", disse ele, pedindo desculpas pelo atrevimento. E é verdade. Trudeau não é racista e por isso não tinha de pedir desculpas. Mas não só pediu como reconheceu um gesto racista, dando razão a quem se sentiu ofendido, reforçando este clima irrespirável onde só sobreviverá um discurso neutro, consensual, onde alguém pode ser desqualificado por algo que, sem qualquer intenção, disse ou fez há 18 anos. E há sempre alguém que se ofende.
E se Trudeau tem carreira pública para mostrar e contraditar uma acusação destas, podendo merecer algum benefício da dúvida, imaginem o que não sucede com todos aqueles que, sem percurso tão público, se veem na impossibilidade de demonstrar factos negativos perante uma turba em fúria: como provar que não se é racista se basta, para essa acusação proceder, uma festa de máscaras?
Advogado