Em história, os factos com consequências importantes não devem ser esquecidos. E é um desses factos a forma politicamente pouco inteligente como o governo de Passos Coelho conduziu o país, sendo a consequência mais importante o fim do regime de governos de apenas uma parte dos partidos na Assembleia da República. E essa alteração ainda terá mais consequências no futuro..É fácil dizer mal do sistema político nacional, mas é também fácil recordar que ele é herdeiro de 200 anos de história, atribulada, por vezes, mas cada vez mais consolidada. Essa história parlamentar levou o país a um regime político multipartidário. Portugal não é o Reino Unido nem a França. Mas é como tantos outros países pela Europa fora onde várias coligações parlamentares são possíveis. O relativo atraso político levou a que a atual coligação acabasse com uma designação algo depreciativa. Mas isso vai passar. Em outras paragens, essas coligações são conhecidas como da Jamaica ou do semáforo (Alemanha, Áustria, Bélgica). Neste contexto, a estratégia de Rui Rio, por exemplo, é a mais acertada. Desradicalizando o que seu antecessor radicalizou, é improvável, mas não impossível, que um dia se ligue ao Bloco de Esquerda (recorde-se, a propósito, que PS e CDS já se coligaram no passado). Será sempre uma questão de legítima negociação política. Ou o que o PS de Costa se ligue ao PCP e só ao PCP..No meio deste novo e evidente cenário, a discussão muito presente nos media sobre se o PS vai ou não ter maioria absoluta só faz sentido se for lida à luz do debate político. E, na verdade, muito do atual jornalismo é ator desse mesmo debate, em vez de simples divulgador e interpretador..Vejamos. Pelos resultados da governação dos últimos quatro anos, podemos concluir que os responsáveis se sentem contentes. O PS conseguiu o feito quase inédito de governar em minoria durante uma legislatura completa. O BE está satisfeito porque conseguiu dar ao seu verdadeiro e por agora consolidado eleitorado parte importante daquilo que queria. E o PCP, embora com mais dificuldades de o demonstrar taxativamente, idem aspas. Os partidos estão contentes porque os respetivos eleitores também o estão. Assim, com o espaço político à "esquerda" coberto desta maneira, onde está o lugar para uma maioria absoluta do PS? E é mesmo provável que António Costa não almeje essa maioria. Não será para ele mais fácil lidar com Catarina Martins do que, por exemplo, "aturar" Francisco Assis ou a malta do PS que gosta de jantar com o PSD?.Mas há mais. Durante Passos e a troika, houve muitos ganhadores, entre teóricos de impossíveis teorias económicas, banqueiros especuladores, pessoal que prefere pagar menos IRC, empresas que gostam de vender ao Estado ou tomar em rédeas negócios por este inventados, mas houve ainda mais perdedores. Muita gente que pouco tinha com ainda menos ficou. Com a solução governativa que agora termina, os que menos tinham ficaram com algo mais, mas o resto ficou na mesma. Foi o resultado de boa ciência governativa e, acima de tudo, económica e financeira (aquela que só o Reino Unido, praticamente, continua a desprezar, com as consequências que conhecemos). Mas mesmo a gente do mais que pouco ou nada perdeu tem um espaço político que não quer nem deve abandonar. Seria preciso muita ginástica mental vê-los a votar no PS..Com tudo isto, o espaço para o PS ter maioria absoluta é muito reduzido. Porque se fala, então, tanto nisso? Simples, porque, no fim, quando saírem os resultados, a vitória por maioria relativa, que as sondagens indicam, poderá ser diminuída. Não vejo, sinceramente, outra razão. A não ser que seja por pura e simples falta de temas de discussão..Ora, aqui a história deveria contar outra vez. Os quatro anos passados foram positivos e fizeram avançar o país. Mas é preciso arranjar agenda para os próximos quatro anos e ela não será simples. O que se vai fazer com os custos crescentes da saúde? Como se vai lidar com o problema da quase inexistente habitação de rendas controladas? Como se vai conseguir educar mais e melhor os jovens? Como se vai acabar com o diesel, o plástico e impedir o novo aeroporto? Como vamos ter mais comboios e bicicletas? Como vamos sustentar o equilíbrio financeiro (dívida) e macroeconómico (défice externo) do país?.Enfim, democracia, política, eleições e tudo o mais às vezes não levam às discussões mais importantes. Mas, como alguém famoso já disse, é o pior sistema, excetuando todos os outros. Continuemos, portanto..Investigador da Universidade de Lisboa