Foi numa dessas noites de dezembro último, época marcada pelo regresso de Aline Frazão a Angola, seu país natal, que ao ler os últimos dois parágrafos do livro Como Se o mundo não Tivesse Leste, do seu conterrâneo Ruy Duarte de Carvalho, o velho personagem Adriano Kapiapia como que a agarrou pela roupa e a levou para dentro da chuva..O que é que isso significa? Significa que ela, que então trabalhava no disco de voz e violão hoje lançado, transpôs para canção o que ali estava escrito. "Para mim estava tudo ali, tudo aquilo de que andava à procura. Até é comovente falar sobre isso, porque a gente esquece-se de estar atento", explica ao DN numa manhã bem cedo, sentada no café Luanda, nome tão a propósito, agora que, depois de 10 anos fora, essa voltou a ser a sua cidade, e com mais vida cultural do que nunca, "onde à terça e à quarta-feira se tem de escolher onde ir", tantos são os lugares onde a vida pulsa.."Toda a descrição final desse personagem é quase a descrição da atenção plena, desse homem, desse velho, nesse lugar no meio do nada, no mato, a conseguir ler a humidade do ar, a mudança das nuvens, a cor das montanhas, o cheiro da terra, sentir a chuva chegar. Essa sabedoria que faz que ele seja aquilo tudo, todos aqueles elementos estão dentro dele e ele está fundido com todos, com a vida, é como se ele fosse igual a ela própria. É uma imagem muito potente, muito inspiradora". E depois recita aqueles agora versos da canção Kapiapia, que canta com Luedji Luna: "É mundo e se é mundo progride em silêncio porque é o silêncio que governa tudo. Está dentro da chuva.".Falamos então de Dentro da chuva, álbum de voz e violão, formato que a autora de Insular (2015) ou Movimento (2013), hoje com 30 anos, há muito queria gravar. É o seu quarto álbum. "Num contexto de muita demanda, muito ruído, barulho, de certa forma esse olhar para dentro, esse despir da canção é uma mensagem importante. [É um disco] de menos elementos, de introspeção, de menos é mais."."Acho que a música é um balão de oxigénio".O facto de ter deixado para trás Lisboa e a sua banda também fazia daquele um momento mais solitário e, por isso, propício a este formato. A voz e a guitarra ficam mais despidas naquelas canções, cuja maioria Aline também escreveu. Nelas percebe-se uma certa geografia pessoal, desde logo, claro, em Um Corpo sobre o Mapa (música de João Pires, dos Cordel), com as suas passagens por Barcelona, Lisboa "para não voltar" ou até Zanzibar. Mas não é disso que a cantautora fala quando se refere à exposição que este formato implica.."Hoje já não penso em exposição biográfica. Acho isso uma tontaria. São coisas que todo o mundo tem, então até é bom falar-se. As pessoas estão muito fechadas. Para isso é que serve a música: é o lado também terapêutico que a música tem, de salvação. Acho que a música é um balão de oxigénio. Quando falo de exposição tem que ver com uma fragilidade musical, técnica. Não estou acompanhada de uma banda. Não há disfarces", explica..O medo no Rio de Janeiro.Tudo foi gravado no Rio de Janeiro e essa é toda outra história, porque o Rio, ou o Brasil, é o lugar por excelência da voz e do violão. Além disso, é uma das cidades de Aline, onde ela, neta de uma brasileira, começou por ir com os pais. O lugar do estúdio, onde o álbum foi gravado por Gabriel Muzak, era "muito bonito", ali mesmo no Jardim Botânico. Mas o Rio de Janeiro já não é só "a Cidade Maravilhosa".."Foi muito chocante. Foi difícil lidar com a insegurança, com o medo, medo de tiros. Eu não sabia que estava assim tão mal, guerra mesmo. Ouvias os helicópteros, polícias a disparar para cima dos morros, um contexto bélico. Faz-te refletir muito sobre o estado do Brasil agora e o que é que essa beleza significa, o que é que vale. Intelectualmente também é muito provocador quando estás a fazer um disco onde queres colocar beleza...".Perguntamos-lhe se o que viu e sentiu no Rio de Janeiro, onde só em 2017 existiram 6749 mortes violentas, entrou também nas suas canções. "Tem-se falado muito deste disco como um disco suave. Sumaúma é esse single muito amistoso. Mas o disco tem um lado B, músicas como Zénite e Fuga, que tem noise mesmo, ruído, desconforto. Há esse lado mais rasgado, desassossegado... Tem de haver as duas coisas. Convém que haja sempre as duas coisas nas pessoas.".Há de facto no disco esse lado B, de "quando tudo fica mais real/ Na quarta-feira, após o Carnaval", como ela canta em Areal de Cabo Ledo, acompanhada pelo violoncelo de Jaques Morelenbaum. Encolhe os ombros e sorri quando lhe perguntamos por ele, um dos grandes nomes da música brasileira, que tocou com Tom Jobim e produziu discos de Caetano Veloso. "A forma de ele tocar é como se fosse uma essência de um perfume, muito concentrado. O Jaques é como se fosse isso: toda a beleza do Rio de Janeiro concentrada num frasquinho musical daquele cello. Abre um bocadinho e cheira tudo muito bem. Sempre quis tocar com ele.".Quanto a Sumaúma, é a alegria que se escuta e se vê no vídeo realizado por Kamy Lara, nessa irmandade de mulheres onde aparece até a mãe de Aline Frazão. "Nossa luta continua/ Contra a maré da inverdade/ Por ela vamos pra rua/ Tomaremos a cidade", canta ela, que, recorde-se, pertence ao coletivo angolano Ondjango Feminista. E mesmo que a geografia do disco se estenda até Serge Gainsbourg, de quem Aline canta Ces Petits Riens, detenhamo-nos em Angola.."Quando eu cheguei ainda estava tudo mais ou menos na mesma. As eleições [presidenciais, de 2017] foram uma experiência interessante. Como sempre na história de Angola, são muitas mudanças num curto espaço de tempo. Acho que realmente o país está a mudar e qualquer pessoa que esteja lá sabe isso", conta, referindo-se à presidência de João Lourenço, agora também à frente do MPLA.."Agora sente-se muito essa esperança, essa ideia de que o país pode mudar, isso é muito forte. Há um clima de as pessoas quererem andar para a frente, a energia de querer mudar, e ao mesmo tempo há grandes limitações económicas da crise. Acho que o mais importante é atacar de frente as políticas sociais e começar a investir numa base estrutural para o país, a nível de hospitais, de escolas... Estamos a falar de sobrevivência", diz a cantautora..Agora é tempo de levar Dentro da Chuva para a estrada. Em Portugal será no Porto a 9 de novembro, na Casa da Música, e no dia 29 no Teatro São Luiz, em Lisboa. "Acho que quando voltar ao palco a gente se reencontra com o Adriano Kapiapia numa esquina da vida." Ficamos assim.