O que acontece à democracia liberal em tempos de polarização moral
Tenho escrito sobre a polarização que começa a marcar o debate político ocidental. Há como que um convite, tanto à direita como à esquerda, para que se aproximem dos extremos, como se assim ganhassem um suplemento de legitimidade, como se apenas os extremos fossem espaços puros, autênticos, os únicos preparados para a derrota do lado oposto.
Não se trata aqui de uma polarização meramente política. Nada tenho contra a polarização política, duas políticas em confronto. Nunca gostei da ideia de bloco central ou de pactos de regime, sempre me bati contra o socialismo pelo liberalismo e escrevi várias vezes que a existência de alternativas políticas é salutar.
Trata-se de uma polarização moral, a separação entre bons e maus, patriotas e antipatriotas, corruptos e lesados, elites e o resto das pessoas. Esta polarização impede o reconhecimento da legitimidade do outro lado, porque não é possível fazê-lo quando, do lado de lá, estão antipatriotas ou corruptos ou elites.
Vejo esta polarização moral com preocupação, porque a essência da democracia liberal reside na capacidade de reconhecer legitimidade no outro. Um espaço político que aceite, cultive, se adapte, a uma polarização moral é um espaço que se prepara para o autoritarismo. Não há ditadura que não parta do pressuposto de que o outro lado não tem legitimidade, que está ao serviço de interesses obscuros, que tem um plano para destruir algo importante para nós.
Não posso ficar tranquilo com a esquerda que nega à direita a possibilidade de pensar, que confunde as fronteiras do seu pensamento com as fronteiras do moralmente admissível, impondo a sua agenda com uma inaceitável superioridade; e vice-versa, que também sucede - o que faz com que, como nas guerras de irmãos, se ouça com frequência que "ele começou primeiro".
Tenho por isso escrito sobre a necessidade de evitar esta polarização: se não houver um espaço de reconhecimento mútuo, se não houver uma partilha de legitimidades, é a democracia liberal que está em risco - o que em nada significa que não haja muito a combater do lado de lá.
Nas várias reações que tive a estas reflexões, impressiono-me com a facilidade com que as pessoas estão dispostas estão a deslegitimar o lado de lá, sem se aperceberem, ou fazendo por não perceber, o quanto se aproximam do autoritarismo. Infelizmente, é mais fácil expor um populista e os seus esquemas no futebol do que na política.
Chamar a atenção para os perigos de aproximação ao autoritarismo, procurando criar espaço para a moderação, fez-me ouvir algumas coisas: esquerdista, iliberal, relativista, fraco, que não sirvo à direita. Foi a primeira vez que ouvi coisas destas. Anos a bater na esquerda e a desmascarar os seus erros e políticas, anos de governação a liberalizar e a desregular e a combater o socialismo foram reduzidos a nada. De radical liberal de direita passei a colaboracionista de esquerda por não louvar Orbán ou Bolsonaro. E este género de coisas também sucede à esquerda. Já vi socialistas a aderir ao marxismo bolivariano e a festejar revoluções bolcheviques e recordo o que à esquerda se disse de socialistas que não aderiram à geringonça, colocando-se mesmo em causa o seu socialismo.
Estes epítetos confirmam a minha sensação de polarização moral e apontam para o que aí vem, para uma tentativa de deslegitimação não só das pessoas do lado de lá como também daqueles que, sendo do mesmo lado, se recusam a contribuir para o autoritarismo. Não são bons sinais.
Para derrotar o socialismo, que é mau para o país, para vencer a esquerda, que tem uma visão muito diferente da minha, não preciso de prescindir da liberdade nem da democracia liberal nem de simpatizar com autoritarismos. Pode dar trabalho, mas ao menos não prescindo do que me é mais essencial.
Advogado e vice-presidente do CDS