Tuberculose ainda existe e Portugal é o país da Europa Ocidental com incidência mais elevada
"Quanto menos a vemos, menos pensamos nela". A frase é dirigida à Tuberculose (TB), a doença que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou, no virar do século XXI, "uma emergência mundial para a Saúde Pública". É citada ao DN pela atual diretora do Programa Nacional para a doença, da Direção-Geral da Saúde, a pneumologista Isabel Carvalho, mas, na verdade, a frase é da autoria da sua antecessora.
"A professora Raquel Duarte costumava usar esta frase, que é o problema chave da doença", explica, sublinhando, no entanto, que "Portugal tem vindo a fazer um bom trabalho nos últimos 20 anos no combate à tuberculose, porque as medidas que foram tomadas têm-se manifestado muito eficazes".
Mas, adverte, Portugal "ainda tem muito a fazer" para atingir as metas definidas pela OMS para 2035. A médica recorda que o nosso país "tem estatuto de baixa incidência a nível a mundial, mas é o que tem a incidência mais elevada na Europa Ocidental", e esta situação não pode ser esquecida.
"É preciso que todos nós, população e profissionais, nos lembremos que a doença existe" e que quando há "uma tosse e uma febre persistentes, um emagrecimento anormal e um cansaço que não passa, pensar no diagnóstico de tuberculose". Senão, os casos continuarão a ser "diagnosticados tardiamente", sublinha a especialista.
A aposta estratégica para o combate à doença na atualidade e no futuro passa, precisamente, pela "prevenção ativa". Como explica, "ir à procura dos potenciais casos futuros, para que estes possam ser identificados e para que façam medicação preventiva evitando a manifestação da doença", o que só é possível se, de facto, se começar a diagnosticar mais cedo.
Destaquedestaque"Uma tosse e uma febre persistentes, um emagrecimento anormal e um cansaço que não passa, pensar no diagnóstico de tuberculose".
"O diagnóstico precoce permite controlar a infecciosidade identificando mais rapidamente quem é que dentro dos conviventes do doente infetado precisa de tratamento preventivo, porque são estes que têm a grande probabilidade desenvolver a doença, e melhorar o prognóstico do próprio doente".
A mensagem da diretora do programa nacional corrobora o alerta lançado há dias pela OMS, através da publicação do seu relatório anual, que destacava o seguinte: "O número de novos casos bateu o recorde a nível mundial em 2022, desde que a OMS começou a monitorizar a doença, em 1995".
Foram notificados 7,5 milhões de novos casos - um número que resulta da soma dos casos registados por 192 países (de um total de 215 que integram a organização), que representam mais de 90% da população global. O relatório assinala ainda que a TB foi a segunda doença infecciosa que mais matou em 2022, a seguir à covid-19, embora o número total de mortes tenha diminuído - 1,3 milhões, menos cem mil do que em 2021, sendo que esta continua a ser a principal causa de morte entre as pessoas com sida.
A pneumologista admite que, em relação a Portugal, se pode dizer que vive em contraciclo em relação a outros países, uma vez que "a incidência, e por consequência o número de casos, tem vindo a reduzir lentamente, não à velocidade com que gostaríamos".
De acordo com os últimos dados da DGS, a incidência da doença no país tem-se situado entre os 14 e 16 casos por 100 mil habitantes, o que é menos do que há uma década quando este valor era de 20 casos por 100 mil habitantes. De 2017 a 2021, este valor registou uma descida de 5,1%, mas, reforça a diretora do programa, "não podemos esquecer que há muito a fazer. A meta definida pela OMS para 2035 é a de que baixemos entre 8% a 10% o número de casos, e ainda estamos nos 5%". Em 2019, foram notificados 1848 casos, em 2020, 1465, o que correspondeu a uma taxa de notificação de 14.2 por 100 mil habitantes.
"A tuberculose é uma doença que assusta as pessoas e que ainda é estigmatizante, mas continua a ser vista como uma doença que caracterizou o país no passado e que já não é assim. O que não é verdade", comenta. Este é, aliás, um dos problemas no combate à doença. "Tivemos de procurar novas estratégias para "a conseguir controlar nalgumas regiões". Por exemplo, "no Vale do Sousa, no Norte, onde há os concelhos com maior incidência de TB, começámos a trabalhar com Organizações Não Governamentais, procurando dar mais literacia à população juntamente com outros cuidados e rastreios, para que a mensagem fosse mais facilmente percebida".
Destaquedestaque"É preciso sensibilizar os profissionais, para que estes estejam perfeitamente elucidados que a TB ainda existe e, que hoje, temos mais ferramentas laboratoriais, que chegaram até com a covid-19, que são rápidas a dar-nos um diagnóstico".
Segundo a médica, é preciso que "todos percebam, quer o cidadão que se encontra de forma irregular no nosso país, e aqui falo da população migrante, quer o cidadão sem-abrigo ou com dependências e outros, para quem o acesso aos cuidados pode ser mais difícil, que o diagnóstico e o tratamento à doença são gratuitos e que podem iniciar o processo através dos cuidados de saúde primários ou dos Centros de Pneumologia".
Isabel Carvalho destaca que a estratégia para o futuro, e se quisermos que a curva da incidência continue a descer, tem de passar mesmo "por trabalharmos quem seja mais vulnerável e esteja mais exposto à TB e quem tem menos acesso aos cuidados de saúde. É preciso garantir que os cuidados chegam aos doentes".
Este trabalho junto da comunidade também já está a ser feito em algumas regiões e em parceria com ONG, para que, quando os doentes não queiram ir às unidades de saúde para serem diagnosticados e tratados, os cuidados lhes possam ser levados através das equipas de rua. "Temos cada vez mais unidades móveis. Por exemplo, na região de Lisboa e Vale do Tejo, existe uma parceria com várias ONG em que é possível fazer o rastreio na rua".
Por outro lado, volta a reforçar, "é preciso sensibilizar os profissionais, para que estes estejam perfeitamente elucidados que a TB ainda existe e que, hoje, temos cada vez mais ferramentas laboratoriais, que chegaram até com a covid-19, que são mais rápidas a dar-nos um diagnóstico do que as ferramentas clássicas". O objetivo "é não deixar alguém infetado durante mais tempo por não haver um diagnóstico", explica.
Isabel Carvalho lembra: "A TB não é uma doença que se cure sozinha, portanto acaba sempre por aparecer, mais tarde ou mais cedo". Portanto, uma vez que ainda não há uma vacina que seja eficaz para a tratar, a não ser a BCG que é protetora das formas graves, temos de facilitar o acesso aos cuidados".
A tuberculose foi e é um grave problema de saúde pública. A OMS voltou a alertar para este facto no seu relatório, mas a especialista portuguesa considera que este recorde no número de casos era "expectável", podendo ser sinal que os serviços de saúde estão a recuperar a sua atividade e a conseguir diagnosticar os doentes que tinham ficado para trás com a pandemia.
"Na prática, o que aconteceu foi que com a pandemia, sobretudo nos dois primeiros anos, em que a incidência da covid-19 foi maior e com mais confinamentos, houve uma quebra na capacidade de resposta dos cuidados de saúde e era expectável que houvesse um recrudescimento no número de casos, sobretudo nos países com menor rendimento e com maior incidência. Isso aconteceu. O facto de haver mais casos no passado pode significar que os casos não diagnosticados acabaram por ser", conclui.
Casos. A maioria das pessoas que desenvolveram tuberculose (TB) em 2022 vivia nas regiões do Sudeste Asiático (46%), África (23%) e Pacífico Ocidental (18%), com proporções menores no Mediterrâneo Oriental (8,1%), nas Américas (3,1%) e na Europa (2,2%).
Resistência. A tuberculose multirresistente continua a representar uma crise de saúde pública. Cerca de 410 mil pessoas desenvolveram TB multirresistente ou resistente ao medicamento que trata a doença em 2022, mas apenas duas em cada cinco é que tiveram acesso ao tratamento.
Mortalidade. A OMS anuncia que os esforços globais para combater a TB salvaram mais de 75 milhões de vidas desde 2000. No entanto, tais progressos são insuficientes para atingir as metas globais estabelecidas. A redução de mortes associadas à TB foi de 19%, entre 2015 e 2022, ficando aquém do marco estratégico até 2025, redução de 75%.
Incidência. A redução cumulativa na taxa de incidência, entre 2015 e 2022, foi de 8,7%, e o marco da estratégia da OMS era de uma redução de 50% até 2025.