Lula preso, Haddad réu: PT inicia viagem ao inferno
Ainda ecoava no noticiário o interrogatório a Lula da Silva, líder espiritual do PT, no caso do sítio de Atibaia, e já um juiz de São Paulo tornava Fernando Haddad, símbolo da renovação do partido, réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Pelo meio, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, age como candidato em campanha, demonizando os 13 anos de gestão do maior partido da esquerda brasileira. Uma hegemonia que, entretanto, Ciro Gomes, do PDT, e Marina Silva, do Rede, tentam, em reuniões públicas, contestar. Como se esperava desde que foram conhecidos os resultados das urnas no dia 28 de outubro, um inferno paira sobre o PT.
O sítio de Atibaia, dizem especialistas da área jurídica, é um caso ainda mais desafiador para a defesa de Lula do que o do tríplex do Guarujá, que já lhe valeu 12 anos e um mês de prisão. Seguem-se quatro ações, duas no âmbito da Lava-Jato e outras duas em operações chamadas Zelotes e Janus. Apesar de negar todas as acusações, o político mais popular do país deve continuar, portanto, com a justiça no seu rastro ao longo de toda a próxima legislatura.
Haddad, por sua vez, é acusado de se ter beneficiado, a pedido do tesoureiro do PT, de uma doação de 2,6 milhões de reais de uma construtora para pagar dívidas da campanha bem-sucedida a prefeito de São Paulo em 2012. O candidato que somou mais de 47 milhões de votos na eleição presidencial considera o depoimento do dono da construtora sem credibilidade e sublinha que já foi até desprezado pelo Supremo. Mas, entretanto, a notícia desgasta aquele que a maioria dos eleitores vê como sucessor natural de Lula.
O candidato que o derrotou, Jair Bolsonaro, embora já eleito, continua a atacar o rival. "Vou pegar um país destroçado pelo PT", disse o novo presidente nos últimos dias. Ernesto Araújo, o seu ministro das Relações Exteriores, acusado de "recuar o Brasil à idade média" pelo seu antecessor Celso Amorim, que exerceu o cargo no consulado de Lula, rebateu dizendo que fará "exame minucioso no ministério em busca de possíveis falcatruas do PT".
É neste contexto mediático que o partido ainda vê Ciro Gomes, terceiro classificado nas eleições e próximo política e pessoalmente de Lula e de Haddad, reunir-se com Marina Silva (Rede), a oitava mais votada, para tentar concertar no Congresso Nacional "uma oposição programática" a Bolsonaro, independente do PT, mas reunindo a maioria das outras forças de esquerda.
Para Ruy Fausto, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo e estudioso da esquerda brasileira, "o PT já foi hegemónico mas hoje não é tanto". "É importante ver o que o PDT vai fazer, ver o que o PSOL [representado na eleição por Guilherme Boulos] vai fazer, o futuro da esquerda já não é necessariamente o futuro do PT", concluiu à edição brasileira do jornal online The Huffington Post.
Gilberto Carvalho, ministro de Lula e de Dilma Rousseff e membro destacado do PT, faz um diagnóstico da crise do partido. "O PT foi prejudicado pelas mentiras de campanha, como a de que iria "venezuelizar" o país e a história do kit gay contra a família [iniciativa em prol da comunidade LGBT atribuída a Haddad, quando era ministro da Educação, que nunca foi distribuída nas escolas], mas não há dúvida de que o partido tem de visitar os seus demónios". À BBC, edição Brasil, Carvalho enumerou esses demónios: "A convivência com a política tradicional, o financiamento empresarial de campanha, a corrupção que veio com isso e até o enriquecimento de algumas pessoas do partido, muito poucas, que também veio com isso."
Enquanto não se inicia essa "visita aos demónios", que o grupo em torno de Haddad defende mas a que Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e restante direção resistem, o PT tem oposição a fazer. E mesmo que Ciro e Marina se articulem e que o PSL de Bolsonaro tenha passado de um para 52 deputados, o PT continua a deter a maior bancada da câmara baixa do Congresso. "Aliás, o PT sabe muito bem fazer oposição e o governo de Bolsonaro será um prato cheio graças às inúmeras incongruências que vem apresentando", diz Leandro Cosentino, cientista político do Insper, na revista Exame.
"Precisamos, no entanto, de mais um tempinho para digerir as mudanças profundas que resultaram do processo eleitoral", pede Gilberto Carvalho. Refere-se ao advento da propaganda política por via digital, que a campanha de Bolsonaro aproveitou melhor do que a concorrência, e à nova correlação de forças do Congresso. Habituado a liderar um dos polos da política local, sendo o outro comandado pelo PSDB, de centro-direita, agora, por causa da guinada ultraconservadora no país, o PT ainda se habitua a viver ao lado do partido de Fernando Henrique Cardoso na oposição.
O futuro do partido fundado há 38 anos por Lula e outros sindicalistas e por intelectuais passa pela forma como vai encarar o inferno dos próximos quatro.