O vírus de todos os medos
Lembram-se da crise financeira? Lembram-se do que se disse e prometeu, da esperança de que nunca mais fosse possível deixar o setor financeiro entregue à sua ganância e irresponsabilidade, que nunca mais tivessem de ser os contribuintes a salvar bancos para evitar uma ainda maior derrocada da economia? Lembram-se da revolta contra as agências de notação que tinham qualificado como bons produtos que eram uma autêntica aldrabice, contra a ausência de regulação efetiva, contra as portas giratórias entre reguladores e instituições de crédito? Lembram-se de se ter vaticinado o fim do capitalismo como até aí, de se ter dito que nunca nada poderia voltar a ser igual?
Lembram-se como quer a Comissão Europeia quer o Fundo Monetário Internacional começaram por falar da necessidade de estímulos à economia, de medidas contracíclicas, de apoios sociais para fazer frente ao aumento do desemprego? Como nos disseram que era o único caminho?
E lembram-se do que sucedeu a seguir? Que de um dia para o outro o discurso mudou e vimos as mesmas agências de notação responsáveis pela confiança nos produtos que tinham causado a crise, classificando-os de A+, a reduzir a lixo a dívida de países e a lançá-los na miséria, e as instituições que tinham apelado ao gasto a impor austeridade?
Lembram-se dos cortes e mais cortes em setores fundamentais, da redução dos apoios sociais, do emagrecimento da educação e da saúde? Lembram-se daquele vergonhoso relatório do FMI sobre Portugal que usava dados falseados para aconselhar a privatizar tudo e um par de botas e certificava que o nosso Serviço Nacional de Saúde era demasiado caro?
Lembrem-se de tudo isto hoje que ouvimos os mesmos setores, partidos e personagens que defenderam a austeridade "custasse o que custasse" - incluindo os que ainda ontem reclamavam o fim do SNS e da escola pública e o emagrecimento radical do Estado, o fim do IRS e a liberalização total do mercado de trabalho - a clamar por mais dinheiro, funcionários e equipamentos para a saúde, milhares de milhões de apoio a empresas, trabalhadores, famílias.
É verdade que parece sinal de esperança, que é como se se verificasse uma iluminação global e toda a gente percebesse que os serviços nacionais de saúde são fundamentais e devem ser munidos de meios porque só eles podem fazer face a uma situação com esta gravidade, que os défices não podem ser mais importantes que a vida - e vemos a CE a dizer-nos que "suspende" as regras -, que não, não pode ser "custe o que custar e doa a quem doer"; que os doentes não podem ser despedidos e devem ter direito a baixa, que os desempregados devem ser respeitados e apoiados e não tratados como preguiçosos que não querem trabalhar, que os idosos não são um peso insuportável para as contas do Estado mas os nossos preciosos pais e avós que não queremos perder.
Mas como será daqui a uns meses quando os défices nacionais atingirem dois dígitos? Onde está a certificação de que desta vez existirá solidariedade dentro da Europa? Onde está a voz comum da humanidade face a um inimigo que a todos ameaça?
Oiçamos, vejamos os líderes. Donald Trump, de quem só se espera o pior, já demonstrou que ninguém pode contar com os EUA: começou por tratar quer a China quer a Europa como alienígenas pestilentos (só não apelou à construção de um muro com a Europa porque tem o Atlântico) e quis garantir para o seu país os direitos de uma possível vacina. Não temos ali um líder mundial, nem nacional sequer.
Mas olhemos para a Europa. Temos um país desesperado, a Itália, a ultrapassar o número de mortos da China, e a Espanha a ir pelo mesmo caminho. Onde está a UE? Onde está o discurso europeu, a resposta conjunta, a união que somos supostos ser? Em lado nenhum. Cada país fala para dentro, para os seus, como se a UE não existisse; as fronteiras físicas reerguidas para conter a propagação do vírus estão também presentes nos discursos. O tom bélico contra a doença circunscreve-se ao espaço nacional e adota tons nacionalistas.
Nem Merkel, que já mostrou várias vezes, depois dos erros que cometeu aquando da crise financeira, estar à altura de alguns dos grandes desafios que surgiram depois (como no início da crise dos refugiados do Médio Oriente), e que agora já admitiu os eurobonds como forma de lidar com isto, se lembrou de incluir a Europa na sua prédica aos alemães ou de falar da necessidade de ajudar os países onde o coronavírus parece estar a ganhar a guerra.
Nada: é como se os nossos destinos não estivessem ligados. Como se pudéssemos de novo dizer "não somos a Grécia", como se não estivéssemos a falar de uma hecatombe que nos atingiu a todos e à qual não poderemos sobreviver a não ser uns com os outros, juntos. Como se os esforços draconianos da Itália para conter o vírus não estivessem a permitir aos outros países europeus, a todos nós, ganhar tempo.
Parece mentira, mas para nossa vergonha Marcelo Rebelo de Sousa chegou mesmo ao incrível mau gosto de reclamar, na sua mensagem sobre a declaração do estado de emergência, a superioridade e resiliência do país face aos outros: "Na nossa História, vencemos sempre os desafios cruciais. Por isso temos quase novecentos anos de vida. Nascemos antes de muitos outros. Existiremos ainda, quando eles já tiverem deixado de ser o que eram e como eram."
Não houve naturalmente uma linha, uma palavra para a Europa - então, se contamos existir quando tudo tiver desaparecido ou mudado, espécie de heróis do apocalipse zombie. Voltámos às tribos, pelos vistos; estamos na linguagem futebolística. Estamos até na infantilidade metafórica dos livros da escola primária do regime salazarista no "Somos Portugal" com que o PR termina o discurso, depois de invocar a neta do primeiro português identificado como vítima do coronavírus; a neta que é enfermeira e só quer que a quarentena passe depressa para voltar à frente de combate. "Somos Portugal"? E que tal somos pessoas? Que tal sermos decentes? Ou acha Marcelo que se a neta e o avô fossem italianos, espanhóis ou chineses ia ser diferente?
É isto que temos para dizer face a uma ameaça à humanidade? "Orgulhosamente sós"? Esperemos que alguém tenha tino no meio disto, ou estamos perdidos.
Jornalista