Como é que foi lançar um disco de fado, numa fase tão pouco convivial como foi esta quarentena? Eu não decidi lançar um disco no meio do confinamento, propriamente. A data estava marcada e foi antes de sabermos o que se iria passar com esta crise e esta pandemia. E eu tinha concertos ao vivo em Lisboa e no Porto para o mês de abril. Quando começou de facto esta pandemia aguardámos algum tempo para ver se eventualmente haveria alguma recuperação, alguma forma de manter os espetáculos. Só quando se revelou completamente impossível é que os adiámos. A data para o lançamento do CD nas plataformas digitais estava marcada e alterá-la seria inútil. Nas plataformas digitais é indiferente, não é propriamente prejudicial lançar nesta altura em que as pessoas estão em casa. Obviamente que não fiz um lançamento do CD físico, mas isto significa que eventualmente poderei fazer dois momentos do lançamento do disco. Quando tudo isto passar eu conto fazer um lançamento do CD, fazer os concertos de apresentação ao vivo em Lisboa e no Porto e espero que as pessoas adiram na mesma, independente desta décalage entre o lançamento digital e o lançamento físico..Sendo músico de casa de fado, como é que isso é diferente do trabalho de um disco? Eu sou um músico de casa de fado? Sim. Costumo dizer que o fado para se sentir na sua essência e em toda a sua magia, o sítio ideal para o escutar é numa casa de fados. E aí concordo, sou um músico de casa de fado, sem dúvida nenhuma. E canto em casa de fado e acho que é fundamental para qualquer fadista manter essa ligação forte e íntima com a casa de fado. Um disco de fado é sempre uma falsidade. O fado é um tipo de música que vive do instante, vive do improviso, da inspiração, do momento, da troca de energias nesse momento. E um disco é, na melhor das hipóteses, um somatório de vários momentos que se vivem num estúdio. Já por si, não é a mesma coisa. E depois muitas vezes estamos separados dos músicos, as gravações nem sempre são feitas ao mesmo tempo. Eu tento sempre fazer isso, gravar ao mesmo tempo, estar em contacto visual com os músicos e no estúdio onde gravamos temos essa possibilidade. Agora, um disco de fado é quase um registo falso, porque no fundo estamos a matar aquela magia que existe no fado ao vivo, a simbiose entre músicos, fadista, público. E a inspiração do momento. Costuma-se dizer que um bom fadista nunca canta o mesmo fado duas vezes da mesma forma. Um pouco como o jazz, no fado tem sempre que haver algum improviso, alguma mudança, porque não nos sentimos da mesma forma ao cantar um fado num dia e no dia seguinte, não o vamos sentir nem interpretar da mesma maneira. Obviamente que gravamos um tema, mas se no dia seguinte fossemos cantar esse tema, não seria a mesma coisa, já não o gravaríamos da mesma maneira..Mas um disco faz sempre falta... Obviamente que é fundamental para qualquer artista ter um registo discográfico, quanto mais não seja para perpetuar o nosso contributo artístico para esta arte, esta expressão musical. Eu acho que esse é o ponto fundamental e depois um disco, apesar de hoje em dia não se vender muito, continua a ser um cartão-de-visita para qualquer artista..Qual prefere? Sem dúvida que prefiro a Casa de Fados. E se me perguntar se prefiro cantar numa casa de fados ou numa sala de espetáculos, continuo a dizer casa de fados. Acho que é o ambiente perfeito, não é por acaso que existem. Existem exatamente porque foram criadas para este tipo de música que pede intimidade, pede proximidade. Numa grande sala de espetáculos não temos essa intimidade. Não é a mesma coisa, sentir as pessoas a olhar para nós... ou mesmo as que não estão a olhar porque quem realmente gosta de fado não precisa de estar a olhar, basta sentir. Não são só os fadistas que fecham os olhos quando cantam. Muitas vezes quem vai ouvir fado também fecha os olhos quando escuta e isso é porque o fado, mais do que se ouvir ou ver-se, sente-se, e isso é uma das características mais emocionantes deste tipo de música. Esta reação à música, acho que é muito mais provável de acontecer no ambiente especialmente preparado de uma casa de fados. A questão das luzes, a proximidade com os artistas, os outros espetadores, enfim. O facto de estarmos num restaurante, estarmos descontraídos, com um copo de vinho na mão. Tudo isso contribui positivamente..O que há de único e de igual a sempre em cada fado? Tem muito a ver com isto. Pressupõe-se quando se canta fado que estejamos a cantar as nossas próprias emoções, independentemente de quem escreveu as palavras, nós tomamos como nossas as emoções do poeta ou do letrista. E por isso é que eu discordo que se cantem coisas que não tenham a ver connosco. Eu só canto, neste momento da minha vida, temas com os quais me identifico pessoalmente. Consigo visualizar determinadas situações na minha vida com as quais posso identificar determinado fado que consiga cantar. Só assim é que faz sentido. Identificamos determinada emoção, determinada sensação e cantamos um fado. Obviamente que dependendo do dia em que o cantamos, há certas palavras que vamos sentir de maneira diferente, há determinada intenção que queremos transmitir num dia e depois já não vamos fazer igual. Essa é que é a magia que existe em cada fado e que o torna único. Em relação ao que há de igual em cada fado. Muitas vezes é a estrutura, a letra, a música, porque de resto tudo é diferente. Mesmo a interpretação dos músicos, eles também interpretam os fados e não os tocam de igual forma. Nomeadamente, o guitarrista, tocando um instrumento solista que é a guitarra portuguesa, também não o faz sempre da mesma forma. E o violista, o baixista, o contrabaixista a mesma coisa. Nós somos seres mutantes e não sentimos cada fado sempre da mesma maneira. Caso contrário tornar-se-ia demasiado monótono e demasiado linear e este tipo de música pressupõe momento, improviso, intuição e isso é que é a unicidade de cada fado e de cada interpretação..De que maneira é que o fado tem mudado ao longo dos anos? Ao ao longo dos anos, tem mudado bastante. Sendo que, apesar de tudo, existe uma base fundamental de sustentabilidade da essência do fado. E essa base existe porque existem as casas de fado. Obviamente que se tem feito muitas experiências ao longo dos anos. Nós achamos sempre, em cada década, em cada momento, que estamos a inventar coisas e que neste momento há uma grande mudança no fado. Mas isso já se faz desde o principio do século XX, portanto, já nos anos 20, 30 e 40 as pessoas falavam sobre as mudanças no fado, o que é ou não é fado. Nada disto é novo. Nem mesmo as experiências que se têm feito. A pessoa mais revolucionária de sempre foi a Amália Rodrigues e ela experimentou tudo e mais alguma coisa, musicalmente. Por isso, eu não acho que se tenha inventado nada. Nem mesmo esta abordagem mais pop, com a introdução de baterias, das percussões, com os espetáculos ao vivo cheios de luzes e projeções de vídeo, de solos de bateria nos concertos. Se me perguntarem pessoalmente, se eu concordo, se isso é fado, eu diria que não. Acho que é uma perversão daquilo que é o fado . É pop, não é fado. Mas já se fizeram experiências dessas, a Maria da Fé nos anos 60 gravou um disco chamado Pop Fado..O que é fundamental é tentar manter-se as características base do fado, com a sua instrumentalização tradicional, e isso sente-se nas casas de fado. Uma pessoa que vá a uma casa de fado ouvir fado ao vivo sente aquilo que é a essência do fado. Já tive vários casos de pessoas que chegaram a uma casa de fados e que metem conversa com os artistas e dizem: "Nós fomos a um concerto da artista X, na Bélgica ou Holanda e esse foi o meu primeiro contacto com o fado. Gostei muito e quis vir a uma casa de fados para perceber um pouco mais desta música". E depois saem de uma atuação, voltam ao nosso contacto, e dizem: "Então isto é que é o fado". E eu digo: "Pois, aqui é onde se sente aquilo que realmente é o fado". Porque muitas vezes num concerto ao vivo há tanta preparação, há tanto ensaio. As pessoas sabem exatamente o que dizem num determinado momento, sabem como reagir, onde rir e é tudo tão estudado, tudo tão preparado, da mesma forma que fazem na pop, que se perverte um pouco aquela que é, para mim, uma das essências fundamentais do fado, que é essa questão da intuição e do momento. E o momento é sempre diferente. Uma coisa que é sempre feita da mesma forma, sempre igual, acaba por perverter aquilo que é a essência do fado..Portanto, mudar para que tudo fique na mesma... O fado tem obviamente mudado, mas tem mudado muito porque os intérpretes têm mudado. Porque os gostos dos intérpretes têm mudado e as influências que eles depois trazem para o fado são diferentes. E isso passa-se comigo e com todos os artistas e músicos, mesmo a forma destes tocarem está diferente. Temos instrumentos que há uns anos ninguém pensava ouvir no fado. O que é mais relevante é que a essência se mantenha e depois é o que dá no fundo as costas largas ao fado para que ele aguente que se faça todas as experiências possíveis com ele. E isso aplica-se a várias músicas urbanas, como é o fado, o flamenco, o tango. Todas essas experiências são bem-vindas porque ajudam a música a evoluir e ajudam até a atrair novos públicos. Mas é importante que depois não se perca a essência, senão correm o risco de desaparecer, como já aconteceu com outras músicas urbanas. A canção napolitana transformou-se de tal forma e aliou-se de tal forma à pop, que às tantas passou a ser pop. E praticamente desapareceu. Penso que isso não irá acontecer com o fado, precisamente porque existem as casas de fado..A chegada massiva do turismo mudou as casas de fado? Irrita ver pessoas que não sabem nada de fado a ouvi-lo - ou é um elogio? Eles conseguem distinguir? O turismo mudou um pouco as casas de fado. Talvez não tenha mudado a essência, mas tornou-as muito mais exigentes em relação à qualidade. Os próprios turistas subiram o nível de exigência e isso é bom. E não só o turismo, os sites de classificações, tudo isso contribuiu para que as casas de fado melhorassem a qualidade. Mas as casas de fado tradicionais sempre foram locais de eleição, chiques, onde se ia muitíssimo bem vestido, onde se sabia que se comia bem e pagava bastante. Há três categorias de casas de fado. Estas tradicionais, como são o Café Luso, a Adega Machado, o Clube de Fado, o Senhor Vinho, são casas de topo, de elite. Depois há uma classe mais intermédia, onde se come bem, se é bem servido, mas há uma maior descontração. Talvez o serviço não seja de topo, provavelmente têm menos artistas e menos músicos por noite. E depois existe uma terceira categoria, que é o fado vadio, onde canta quem aparece, há uns petiscos e o vinho é o da casa. Todas foram afetadas pelo turismo. Em todas, há talvez uma maior exigência e [risos] obviamente são muito mais do que havia quando eu comecei a cantar em Lisboa há 30 anos. Vamos ver com esta crise quantas sobreviverão. Mas eu espero que sobrevivam bastantes, apesar de não estar muito otimista. Talvez aquelas que tenham maior estabilidade financeira consigam sobreviver, até porque muito provavelmente o turismo vai demorar muito tempo e não há dúvida nenhuma de que as casas de fado sobrevivem muito graças ao turismo, dependem muito do turismo, principalmente as mais caras. Obviamente que, para o bolso do português comum, ir a uma casa de fados destas mais de elite é um investimento. É bastante dinheiro, não acho que seja caro, são conceitos diferentes. Uma pessoa que vai a um concerto e ao mesmo tempo está a jantar, se o fizermos separadamente provavelmente pagamos mais do que numa casa de fados. Se o serviço for bom, a comida também e o concerto for bom, não há porque achar caro. Pode ser muito dinheiro, mas caro não é..Então afinal o turismo até foi positivo. O turismo alterou, principalmente neste aspeto, na quantidade de casas de fado que existem e no nível de exigência. Depois, não me irrita nada ver pessoas que não sabem nada de fado a ouvir. Acho que é normal, em alguns casos resulta bem e as pessoas saem de uma casa de fados a gostar, noutros casos acham que é uma coisa que se tem que fazer quando se vai a Lisboa e não ligam muito. São livres de não gostar, são livres de não perceber, não percebem as letras, portanto não sentem empatia com o que estão a ouvir. Mas há muita gente que sai comovida, que mesmo não sabendo as letras nem entendendo a mensagem, entendem a emoção e saem comovidas. E já tive várias experiências dessas, nomeadamente com o Airbnb, em que falo às pessoas sobre as características e a história do fado, e depois levo-os a ouvir fado ao vivo num jantar típico numa casa de fados muito famosa entre a comunidade dos fadistas, em Alfama. Muitas vezes as pessoas emocionam-se, mesmo sem perceber nada do que o fadista está a cantar. E isso é a beleza da música e, mais em concreto, deste tipo de música onde se transmite esta carga emocional tão grande que, mesmo sem perceberem a letra, conseguem sentir a emoção. E isso é maravilhoso..Até onde é que o fado pode mudar sem que deixe de ser ele próprio? Não sou, de todo, contra qualquer tipo de evolução. Agora, acho que vivemos muito agarrados a essa ideia de que o fado tem que evoluir. Mas, o que é a evolução do fado, senão a recriação daquilo que é o fado propriamente dito? Ou seja, o fado evolui por dentro, não é de fora para dentro, é de dentro para fora. E tudo quanto sejam evoluções de dentro para fora, para mim, venham as que vierem porque é a própria comunidade e os próprios fadistas e músicos que o fazem evoluir. Agora, quando a evolução é feita por quem vem de fora e sente que o fado tem que ser aquilo, para mim não. Porque eu não vou meter-me na música clássica e no jazz e dizer o que devem ser ou fazer. Acho que é uma atitude errada e tem muito a ver com esta nossa incapacidade de aceitarmos as coisas como elas são, neste caso o fado como ele é. Temos essa incapacidade, esse preconceito de achar que o fado tem que ser uma coisa diferente. E porquê? O fado é o que é, tal como a música clássica e o jazz são o que são. Evoluíram? Claro que sim, a música clássica que se compõe hoje em dia não é a mesma que se compunha no século XIX. Tal como o fado, independentemente de todas as ideias peregrinas que existam, não é o mesmo que se fazia no princípio do século XX e nos meados do século XIX. Ele tem evoluído, mas de dentro para fora, e acho que é assim que deve ser. Com a renovação dos intérpretes e dos músicos, da maneira de cantar, da abordagem....Qual é a linha vermelha - é traçada por quem canta ou por quem ouve? Eu não vejo as coisas com esta dicotomia de haver uma linha vermelha. Não acho que haja uma linha vermelha. A haver uma regra, ela é definida por isto: se a evolução é feita de dentro para fora, a própria comunidade do fado para fora, muito bem, porque é a própria comunidade que o está a pedir, não é ditado pelas modas nem por músicos de outras áreas que acham que o fado deve ser isto ou aquilo. Porque tem acontecido, infelizmente. São músicos e cantores de outros géneros musicais que acham que o fado tem que ser outra coisa. Mas porque é que tem de ser? Se a própria comunidade não acha isso, se os próprios fadistas e músicos não acham isso. E podes falar com quase toda a gente da área do fado, porque aqueles que cresceram com fado, aqueles que vivem com fado há muitos anos, podes perguntar e todos vão ter a mesma resposta. Evoluir? O fado tem evoluído, evolui através da qualidade das letras, da interpretação e execução musical, tem evoluído muito. Quando essa evolução é feita pela própria comunidade, pelos próprios intervenientes, pelos próprios artistas, perfeito. É assim que este tipo de música deve evoluir e não é com interferências externas. Penso que as interferências externas procuram mais destruir do que recriar ou evoluir.Quais são os maiores fãs de fado? Não sei muito bem responder a esta pergunta, porque eu tenho visto portugueses que são fãs incondicionais, mas continuo a achar que existe uma enorme ignorância dos portugueses em relação ao fado. Depois do 25 de Abril houve um ataque cerrado ao fado porque houve uma identificação, de certa maneira compreensível, do fado com o antigo regime, porque este foi utilizado pelo regime de Salazar. O problema é que, em Portugal, esse tipo de atitudes demoram muito tempo a passar. Tudo isso criou um preconceito para com o fado que honestamente eu acho que ainda existe. E ainda existe até mesmo nas gerações mais atuais, não é só nas gerações das pessoas que passaram por isto e viveram este período ou ouviram os pais dizer mal do fado. Os portugueses continuam a pensar pouco do fado, a desconsiderar o fado. Cada vez que oiço a expressão "fadinho" ou "faduncho", arrepiam-me os pelos dos pés porque isto é uma desconsideração. Eu não oiço um espanhol referir-se ao flamenco da mesma forma nem um argentino a referir-se ao tango assim. Temos um pouco esta mentalidade muito característica nossa, de desvalorizarmos o que é nosso..O facto de o fado ter sido elevado a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO pode não ter tido uma grande contribuição para o fado em si, mas teve para a cabeça de alguns portugueses, que pensaram, é porque deve ter relevância, então vamos lá dar importância a isto. Nem sempre os portugueses são os melhores fãs de fado. Eu tenho conhecimento próximo de muitos estrangeiros que vivem para o fado, correm o mundo à procura de concertos de fado, que são fãs incondicionais de determinados artistas e que os seguem por todo o lado. Eu próprio, que não estou no topo dos artistas nacionais, já tive situações extraordinárias de pessoas que se juntaram vindas de várias partes do mundo para ouvir um concerto meu. Em Itália, aconteceu-me isso. Pessoas que vieram da China e dos EUA para Itália, para ouvir um concerto meu, e isso é uma coisa extraordinária. E tudo isto tem a ver com a dimensão que o fado tem ganho ultimamente a nível internacional, a partir do momento em que começou a ser incluído no catálogo da World Music e no circuito. Nós costumamos dizer, até por brincadeira, que nas casas de fado, curiosamente e tristemente, que os portugueses são muitas vezes quem se porta pior. Quem mais fala, quem fala mais alto, quem desconsidera mais o fado. É triste, mas é uma realidade. E qualquer pessoa que ande no circuito das casas de fado, sabe e afirma isto categoricamente. Os que têm mais responsabilidade e que deveriam ensinar e mostrar aos outros como se comporta numa casa de fados, são aqueles que pior o fazem, muitas das vezes. Obviamente que isto é uma generalização e as generalizações são sempre injustas e perigosas, mas é um facto..Vamos falar deste disco. Tempo. É um título apropriado, mas não tem nada a ver com o momento. Porque se chama assim? Não tem de facto a ver com o momento. Eu quis-lhe chamar Tempo por várias razões. Primeiro, porque passou muito tempo desde que gravei o anterior. Depois porque eu dedico e demoro muito tempo a preparar um disco. Por um lado, dou bastante importância e quero que o disco reflita a minha evolução, o meu estado de espírito no momento, aquilo que aprendi, aquilo que ouvi, a forma como mudei a minha interpretação, a minha abordagem. Um disco tem que ter um conceito por detrás. E este tem e os outros também e isso para mim é importante. E tudo isto leva tempo e eu gosto que as coisas demorem. Hoje em dia há muito pouco tempo para viver, dedicamos muito pouco tempo a cada uma das coisas que fazemos na vida, e eu gosto de sentir e pensar o contrário. Por isso é que eu gosto, por exemplo, de cozinhar. Porque sou paciente, gosto de dedicar-me ao que estou a fazer, dedico-me com amor e paixão. E é exatamente assim que eu vejo um disco, é como um filho, e, portanto, acho que se deve dedicar o maior tempo possível a esse processo de criação..Em que é que este disco reflete esses últimos anos? Tem muito a ver com o tempo que mediou o meu último disco, Fados de Amor. Foi um tempo de grandes mudanças e acho que o disco reflete muito isso, as minhas aprendizagens, os meus amores e desamores, o meu crescimento como pessoa, como pai. O ter-me casado novamente, o voltar a ser pai numa fase relativamente tardia da minha vida. E tudo isso pesa e tem relevância naquilo que foi a construção deste disco. Tenho ideia de que o nome do disco surgiu antes de estarem reunidos os temas todos, acho que tínhamos - e falo em nós porque vejo as coisas como um trabalho conjunto entre mim, os músicos, e o Tiago Torres da Silva, que me ajudou na produção do disco - meia dúzia de temas escolhidos e já havia nome para o disco, porque eu queria que fosse isto e que a escolha do repertório refletisse a ideia por detrás do disco.Qual é a canção favorita? Eu não consigo dizer qual é a minha canção favorita. Aliás, acho que este é o único disco que continuo a ouvir sem me cansar. Não que não gostasse dos outros discos, mas acho que este é tão meu, exponho-me de tal forma e acho que o trabalho que fizemos foi tão bem conseguido que é o único disco que continuo a ouvir sem me cansar, o que é curioso. Normalmente acontece-me muito isso, e acho que acontece com muitos colegas meus. Nós gravamos e de tanto ouvirmos, porque temos mesmo de ouvir tantas vezes os temas, às tantas cansamo-nos deles e já não podemos ouvir o disco. E depois temos de ficar meses sem ouvi-lo para voltar a apreciá-lo. Neste caso isso ainda não aconteceu, já passaram meses desde que gravámos os temas e eu continuo a ouvir o disco como se fosse a primeira vez. Tenho vários temas neste disco que adoro de paixão, a começar pelo primeiro, a Sangue Frio, com um poema extraordinário do Tiago Torres da Silva, para mim o mais maravilhoso e talvez doloroso que o Tiago alguma vez escreveu. É uma música incrível com a execução extraordinária do Pedro Joia na guitarra. Depois, um tema que escrevi com o meu querido Rogério Charraz, mais um, com uma letra minha e música do Rogério que se chama Sem Fim. Depois outro tema do Tiago, com música do Valter Rolo, que é o Pra Lá de Cada Beijo, que também gosto muito. Depois um poema fantástico, de um grande poeta português chamado Vasco Gato, que é a primeira vez que escreve para fado e orgulho-me muito de ter sido o primeiro artista para quem ele escreveu, chamado Obscura Sina, com música do extraordinário Tiago Machado, que também a toca ao piano. Há vários fados tradicionais que eu gosto muito, nomeadamente o Fado Castanheira, com uma letra minha que se chama Enganos. O Não Digas Nada, com o Fado Zeca, que é um dos fados tradicionais que eu mais gosto. E depois também o último tema do disco é muito importante para mim porque é uma letra do meu pai chamada Terra Nossa, que ele já escreveu há muitos anos. Antes de ele morrer, tive a felicidade de lhe poder dizer ainda que a iria gravar neste disco. E depois decidi gravá-la num fado tradicional, que aliás já gravei num disco anterior, que é um Fado Alberto, muito conhecido e cantado. Mas, se não me engano, é a primeira vez que ele é cantado em balada, que foi como decidimos gravar neste disco. Penso que conseguimos criar um ambiente muito especial e serviu muito como dedicatória ao meu pai..Há ma canção acompanhada ao piano. Outra com cavaquinho... Exato. Tenho uma canção acompanhada ao piano que em termos de fado não é de todo original. Aliás, há fados compostos para o piano no século XIX, portanto não é que seja uma originalidade. Muito fado já se fez com piano, nomeadamente a Amália com o Alain Oulman. Mas para mim é uma novidade, pelo menos em registo discográfico e acho que foi uma boa novidade, com um poema extraordinário do Vasco Gato e uma música de um compositor que já está ligado intimamente à história do fado, que é o Tiago Machado. Depois tenho outra com um cavaquinho, sim, que é o single do disco, que é o Lisboa É Assim. Porquê o cavaquinho? Porque quando o José Fialho Gouveia me deu esta letra, que eu adorei, eu senti imediatamente que o tema precisava de uma sonoridade ligeiramente diferente. Teria que ser um fado, teria que ser algo que soasse a música de Lisboa, mas como falava de uma Lisboa cosmopolita e multicultural, tinha que ter uma abordagem ligeiramente diferente. E então lembrei-me imediatamente do Luiz Caracol, pensei que era a pessoa ideal para fazer este tipo de música, porque a música dele vive muito dessa trilogia entre música portuguesa, africana e brasileira, que era aquilo que eu sentia que o tema pedia. E depois lembrei-me do meu querido amigo Jon Luz e convidei-o para tocar o seu famoso cavaquinho nesse tema, não só porque ele é um músico extraordinário, não só porque o cavaquinho dele tem muito de lusofonia e morna, como ele próprio é um símbolo desta lusofonia com o bar que tem em Alfama e que eu frequento assiduamente, que é o Tejo Bar. E ainda para mais o próprio nome do bar tem a ver com o tema e é por isso que depois gravámos parte do teledisco no Tejo Bar, em Alfama..Quando se grava, depois consegue-se reproduzir o que se toca? Até reproduzimos o que gravamos nos concertos, mas nunca saí da mesma forma. Aliás, quando oiço uma performance ao vivo de um fado em que tudo soa exatamente como está no disco, para mim é completamente contra o que é o fado. Porque, o fado é o momento, a intuição do momento. Se vamos estar a copiar o que foi feito no disco, soa a falso, soa a estudado, a preparado. Não tem a ver com fado, não tem a ver com esta música que é orgânica e intuitiva. Se tiramos esta organicidade e intuição ao fado tiramos tudo, tiramos a sua essência..De que maneira é que este disco foi um desafio? Foi um desafio para mim porque surgiram vários temas que pediram de mim uma abordagem diferente daquilo que estava habituado a fazer, nomeadamente o Sangue Frio, música do Pedro Jóia, que decidimos propositadamente gravar num tom grave para aquilo que é o meu tom normal. Isto para ajudar a dar tensão e emoção à música, porque de facto a letra pedia e a música também pedia muito isso. Depois o Obscura Sina do Tiago Machado também foi um tema que pediu uma abordagem completamente diferente. Entre os dois conseguimos criar ali a energia que o tema pedia e que é um pouco diferente daquilo que costumo fazer enquanto fadista. O Pra Lá de Cada Beijo igual, é um tema mais comedido, que vive mais das respirações, da delicadeza. Enfim, nos fados tradicionais estou mais à vontade, já é um registo a que estou mais habituado. Mas como muitos eram letras minhas havia ali uma certa tensão e pressão de comunicar e tentar transmitir da melhor forma possível a mensagem que queria passar às pessoas. Foram vários desafios, mas deu-me muito gozo que tivesse saído da forma como saiu..O fado é um bom negócio? Dentro da música - há músicos que estão pior colocados nesta altura... Eu acho que nenhuma profissão ligada à arte, pelo menos neste país, é um bom negócio. Obviamente que algumas pessoas vivem bem, que têm muitos concertos, 50, 60, 70 concertos por ano, com certeza que vivem bem porque é possível. Agora isto é uma percentagem ínfima das pessoas que estão ligadas a este tipo de música. Há muita gente que não tem três concertos por ano - e aqui estou a falar de grandes concertos - e vive das casas de fado. É possível sobreviver-se a cantar em casas de fado. Quando eu comecei, era mais fácil porque havia menos casas e talvez se ganhasse melhor. Acho que hoje em dia, tirando as casas de fado de topo - e com a banalização de casas de fado que aconteceu em Lisboa e o excesso de oferta de cantores, - começou-se a pagar muito pouco aos artistas e isso dificulta o sustento desses músicos. E no caso do nosso país, infelizmente, as artes e a cultura não são valorizadas da melhor maneira. Não há condições como vemos noutros países e não existe mecenato cultural. É muito difícil ser-se artista em Portugal, acho que é preciso uma gigantesca dose de paixão e de loucura para se ser artista neste país..Portanto não é um bom negócio? Portanto, não, não é um bom negócio. É um bom negócio para alguns agentes, principalmente para agentes que desconsideram os seus artistas e que os tratam menos bem, isso infelizmente acontece. Tudo depende da atitude, eu tenho colegas que dizem: "Eu sei que me tratam mal, mas conseguem-me concertos". Isso, para mim, é uma forma de estar na vida que eu não compreendo. Mas uma casa de fados, se for bem gerida e com oferta de qualidade, pode ser um bom negócio porque há (ou havia) muito turismo e muita vontade de ir às casas de fado. Dentro da música há músicos e cantores que estão pior colocados e que irão passar muitas dificuldades neste período, infelizmente..Tem sido criativo este tempo de quarentena? Não propriamente. No início, ouvimos muita gente a dizer: "Vamos aproveitar este tempo de isolamento para sermos criativos e vamos criar e vamos fazer e acontecer". Acho que infelizmente todas as pessoas ligadas a este meio, e imagino que a todo o meio musical, estão mais preocupadas em sobreviver e como é que vão sustentar as famílias nos próximos tempos e como é que se vão alimentar. Estão mais preocupadas com isso do que com criar. E quando digo criar, digo qualquer forma de criação. Tenho muitos amigos que dizem: "Nem pensar, como é que eu vou ter cabeça para tocar, cantar e fazer concertos em streaming quando eu preciso é de arranjar forma de subsistir. Eu se calhar vou ter que fazer outra coisa qualquer"..Há outra imagem a passar cá para fora, com toda a gente a fazer concertos... Infelizmente, esta é a verdadeira realidade e não a realidade que as pessoas têm visto na Internet. A dura realidade é outra. E afeta a grande maioria dos músicos: como vão sobreviver aos próximos dias? Como é que vão pôr comida na mesa nos próximos tempos? E quem diz músicos, diz grande parte da população. E isso é que é a realidade. Este tempo de isolamento infelizmente aproximou-nos mais da Internet e das redes sociais, onde não se tem contacto com a realidade. Há um desfasamento da realidade e estamos cada vez mais isolados. E portanto eu acho que vamos ter que nos reaproximar rapidamente, porque as próximas gerações, os miúdos estão cada vez mais apegados a estas novas tecnologias e redes sociais e, por isso, cada vez mais isolados.Isto vai mudar a nossa forma de nos organizarmos em sociedade... Não quero ser demasiado pessimista, mas acho que vamos ter de nos habituar a um mundo completamente diferente quando sairmos deste isolamento social e vamos ter que arranjar formas de nos reaproximar. Porque vai haver muita desconfiança durante muito tempo e isso é o que mais me dói, é estarmos na rua e olharmos para o outro com desconfiança. Isso é horrível, estamos a sentir na pele aquilo que infelizmente muitas minorias sentem e isso talvez nos faça aprender alguma coisa. É importante refletir sobre tudo isto e com estas preocupações todas na cabeça eu acho que é muito difícil ser-se criativo e criar. Eu falo por mim, não tenho escrito grande coisa. Sinto quase uma letargia muito dolorosa por este momento que estamos todos a viver e sinto que o mesmo se passa com muitos colegas meus. Falo com eles e chegámos todos a essa conclusão..Em que medida é que esta crise trouxe à luz do dia os problemas que já existiam no mundo da música? Este tempo de quarentena, de isolamento, traz ao de cima muitos problemas que já existiam no meio da música. E felizmente, por um lado, tem havido manifestações e reuniões de músicos no sentido de tentar encontrar uma solução conjunta. Há uma associação de músicos que já está formada, a AMP - Associação de Músicos Portugueses, da qual eu faço parte e farei parte e apoiarei sempre porque é uma associação solidária que visa defender a classe dos músicos em geral. Acho que pode ser uma oportunidade para que finalmente isso aconteça em Portugal. Existe muita desunião de classe, existe muita desigualdade e muito pouco apoio institucional. Como disse anteriormente, o mecenato cultural também não existe e, portanto, todo este tipo de associação poderá contribuir para que daqui saia um mundo relativamente melhor e mais seguro para a profissão de músico. É isso que eu espero que aconteça, vamos ver. Nesse sentido, estou otimista, vejo reações positivas por parte da comunidade dos músicos. Também tenho visto muitas negativas infelizmente. Atitudes menos corretas por parte de músicos e agentes culturais, com as quais eu discordo. Mesmo por parte do Ministério da Cultura tem havido iniciativas com as quais a própria comunidade discorda e depois são posteriormente canceladas. Há muita coisa a acontecer por causa desta situação, umas boas, outras más, e eu prefiro focar-me nas boas e acho que desta situação sairá talvez uma comunidade mais unida, mais próxima e mais interventiva. E estando mais junta terá mais força para conseguir maior proteção. Não estamos todos na mesma situação, há pessoas mais favorecidas e que têm maior capacidade de superar esta crise e há pessoas que estão em situações dramáticas e é nessas que temos de nos focar e é com essas que nos devemos preocupar..O fado também vai levar um rombo - com a Crise no turismo, a falta de espetáculos? Sim, o fado vai levar um rombo brutal com esta situação. Fomos os primeiros a fechar totalmente a atividade e, provavelmente, seremos os últimos a recuperar desta situação porque primeiro que haja confiança para as pessoas poderem voltar a uma casa de fados ou a uma sala de espetáculos vai demorar. Provavelmente só vai acontecer quando existir uma vacina. E provavelmente seremos os últimos a recuperar deste processo. Vai ser muito complicado para muita gente ligada ao fado e há muitas famílias dependentes totalmente do fado porque há muitos casais dentro da própria comunidade, ou seja, há muitos cantores casados com músicos e vice-versa. Muito provavelmente há casas de fado que não vão poder reabrir. Portanto, vai haver muita gente que não vai voltar a ter o seu posto de trabalho. Algumas pessoas vão ter que se reinventar, procurar outras coisas para fazer. É triste, mas eu acredito que, com o tempo, poder-se-á encontrar algum tipo de recuperação que vai ser lenta, mas acontecerá. Depois é um critério natural de seleção que irá acontecer, infelizmente de uma forma violenta. A queda ainda é maior porque o fado estava a viver um momento muito pujante, com muitas atuações, muitos concertos, muitas casas de fado, muita gente a vir para o fado para cantar e tocar, nomeadamente de outros géneros musicais, e de repente uma queda abrupta, repentina, que ainda dói mais, pesa mais, envolve mais gente, portanto não sei. Não sei como é que isto vai recuperar, mas tenho esperança que recupere.