"Casos como o da Fundação Berardo penalizam o setor. Mas não é por causa de uma que se estraga a reputação de todas"

A primeira mulher a presidir ao Centro Português de Fundações acusa o governo de discriminação para com as fundações, já que quer manter seu o poder de lhes dar certificado de nascimento. E diz que isso não é garante de transparência e não evita os casos polémicos como os da fundação Berardo.
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Como presidente do Centro Português de Fundações esteve na origem da proposta de alteração da Lei-Quadro de Fundações aprovada na sexta-feira. Considera que o governo foi tão longe quanto queria na resolução dos problemas destas instituições?
O Governo aceitou de bom grado a ideia de rever a lei e aceitou quase todas as sugestões que o Centro fez para melhorar o ambiente legislativo e operacional das fundações. Mas não, não foi tão longe quanto nós desejaríamos, uma das nossas bandeiras não foi adotada na proposta de lei do governo e nós esperemos que em sede parlamentar ainda se possa reunir o consenso para a fazer essa alteração. Há um modelo de reconhecimento das Fundações que não colhe, nunca colheu o nosso apoio. As fundações são as únicas entidades em Portugal que para terem personalidade jurídica precisam do reconhecimento do governo. Consideramos que isto tudo é anacrónico, que não é bom para as fundações, que não tem sentido e que é discriminatório porque todas as outras pessoas coletivas em Portugal constituem-se através de uma escritura, de um contrato, de um negócio jurídico e não precisam da tutela nem do reconhecimento do governo. E é mais discriminatório ainda na medida em que dentre as várias famílias da economia social só as fundações é que estão nesta situação.

O Estado, neste caso os governo querem ser controladores das próprias fundações?
É possível e desejável, que haja escrutínio sobre as fundações, no entanto fora desta tutela da sua nascença. Por exemplo, o estatuto de utilidade pública, que se aplica às fundações e a um número imenso de entidades, associações, cooperativas, etc, tem um conjunto de regras de escrutínio que existem, que devem existir. Porque é preciso transparência para as entidades que têm estatuto de entidade pública. No entanto todas as outras se constituem normativamente. Portanto, o que eu digo é: é possível nós sairmos do paradigma do reconhecimento normativo - caso a caso - pelo governo - na lei até diz pelo primeiro-ministro que pode delegar a competência - é possível abandonar esse paradigma, libertar a tutela em relação às fundações e, mesmo assim, ter escrutínio sobre elas e sobre todas as entidades que, por exemplo, têm o estatuto de utilidade ou regime especial de instituição particular de solidariedade social, etc.

Mas isso é um preconceito em relação às fundações?
É discriminatória e única. Não sei se é um preconceito, mas seria interessante fazer uma declaração de confiança nas fundações, na sua maturidade e na sua autorregulação, sim.

Mas no diálogo que teve com o Governo sobre esta matéria qual a justificação para manter essa tutela?
Não é ainda o momento, foi a explicação mais plausível que foi dada. Mas a senhora Ministra da Presidência disse que se houvesse consenso no Parlamento, em torno desta questão... pois a proposta de lei do governo pode ser enriquecida em sede parlamentar. Compreendo que é um passo muito grande, mas é um passo que tem que ser dado. Não retira os méritos desta revisão legislativa, mas ela fica aquém daquilo que é necessário para haja normalidade, eu diria até democracia em Portugal, no seio da economia social.

No que diz respeito à fiscalização das fundações qual é que é o papel, de facto, do Estado?
A lei de 2012, a Lei-Quadro das Fundações é a primeira lei que regulamenta detalhadamente o setor, as relações com o Estado, etc. Desde 2012 que o Estado tem poderes muito significativos, significativos demais para aquilo que nós achamos que é o respeito pela autonomia institucional e independência das fundações numa normalidade democrática. A verdade é que o Estado tem poderes para escrutinar as fundações sempre que elas têm um estatuto especial, IPSS, utilidade pública - sempre que recebem dinheiro público. Está muito bem, deve ser assim. Nós somos os mais interessados na transparência do setor. No entanto as fundações são fundações privadas. São pessoas coletivas privadas de direito privado. Grande parte delas, a maioria delas, e isto é uma intrusão. O Estado pode extinguir fundações, o Estado pode propor ao tribunal a extinção de fundações. E isto é, digamos, o limite. É um poder muito grande. Mas devo dizer-lhe que, mesmo agora, quando nesta revisão legislativa o governo propôs melhorar os instrumentos de fiscalização das fundações privadas para a sua eventual extinção, se houver desvio dos fins, nós não nos opusemos. Porque achamos que é muito importante que a transparência seja assumida também pelo Centro Português das Fundações como o contrapeso da credibilidade e da confiança que queremos na sociedade.

A Fundação Berardo e a Fundação Sousa Cintra, envoltas em polémicas, também foram reconhecidas individualmente, e que deviam ter sido escrutinadas, não é por causa disso que não deixaram de ter problemas...
Sim, houve o reconhecimento dessas fundações por parte do Estado. E o Estado tem, à luz da lei atual, poderes para as escrutinar e até para as extinguir ou, pelo menos, propor ao tribunal a sua extinção. A nós parece-nos que são casos lamentáveis, que penalizam o setor todo. Não é por causa de uma andorinha que se estraga a primavera, que por causa de uma fundação se estraga a reputação de todas. Das duas fundações que citou apenas uma é associada do Centro Português das Fundações. E, quando em 2018, tivemos conhecimento público, no espaço público, das declarações do Comendador Joe Berardo, o Centro Português das Fundações escreveu-lhe uma carta a pedir explicações, porque as declarações que ele fez no Parlamento, no âmbito da comissão de inquérito, contrariam o código das boas práticas que vincula as fundações associadas do CPF. O senhor comendador não respondeu.

Mas, nesse caso, o Estado, não agiu neste campo com toda a fiscalização que devia ter sido feita.
Eu não tenho a informação detalhada dos processos, porque eles não correm no espaço público, e o Centro Português das Fundações não tem nenhuma informação privilegiada e não tenho conhecimento de nenhuma atuação que o governo tenha tido nesta matéria. Se teve alguma, qualquer que ela fosse, está bem. Porque estão na lei os instrumentos e devem ser exercidos. Se o Estado pode fazer inspeções às fundações que são de utilidade pública, através de auditorias ou de sindicâncias, espero que o tenha feito.

Ninguém sabe bem quantas fundações existem. Há números contraditórios. Porque é que não há uma certeza sobre os números das fundações que existem em Portugal?
As razões são históricas e são de registo das entidades. Houve, em 2012, um censo às fundações que, salvo erro, identificou 800 - à volta de 800 - mas hoje a fonte mais segura é a conta satélite do Instituto Nacional de Estatística, referente ao setor da economia social. E, de acordo com essa conta, e com os últimos dados de 2019, há 619 fundações em Portugal. Aliás elas empregam 14.000 pessoas e repartem-se, 30% prestam serviços sociais, 21% dedicam-se a cultura, 17% à saúde e 9% à educação.

O caso Berardo é extravasa a própria dinâmica das fundações, mas manchou, como disse, muito a imagem das outras instituições aumentou a desconfiança sobre elas?
É como em relação aos políticos. Há um político que não honra o seu código de ética e mandato que recebe dos eleitores e por um pagam todos. As pessoas são assim. Isso é da condição humana. Julgar a floresta pela árvore e às vezes vice-versa. De modo que é uma situação que não interessa nada às fundações em Portugal. As fundações preocupam-se com a transparência do seu governo, da sua gestão, e todos os dias, em gerar impacto social transformador na sociedade. Querem transparência e , aceitam escrutínio, mas pedem também respeito pela sua autonomia e pela sua independência.

Se se vier provar as ilegalidades na fundação Berardo, o que fará o CPF?
Não temos o poder de escrutinar a legalidade. Se todos os inquéritos que estão a ser feitos tiverem essa conclusão nós não podemos senão dizer à Fundação Berardo que não está bem entre nós.

O Tribunal de Contas várias vezes também apontou algumas questões de falta de transparência no que diz respeito às contas das fundações...
É também uma questão que é muito importante melhorar na lei que está a ser debatida no Parlamento. A lei fala em fundações privadas de direito privado, fundações públicas de direito privado e depois fala de fundações públicas de direito público. A nosso ver isso não são fundações, são institutos públicos. Aliás a própria lei remete para o estatuto dos institutos públicos. E há uma confusão muito grande. E a confusão terminará, ou pelo menos dissipar-se-á se for remetido para o setor público, a César o que é de César. O Tribunal de Contas pronuncia sobre as contas das fundações e as pessoas, que obviamente não compreendem, nem têm que compreender os detalhes e as minudências da vida das instituições, só ficam é mais confusas. Portanto, separar as águas entre o que é público e o que é privado. O que é do Direito Público e o que é de Direito privado é também uma das causas que ainda está por conquistar para fundações em Portugal.

Qual o papel das fundações junto da comunidade?
As fundações são um meio muito rico, plural, há fundações enormes, que todos conhecemos, há fundações pequeninas que atuam localmente, em pequenas comunidades ou em temas e áreas específicas. As fundações basicamente são patrimónios privados ao serviço do interesse público, da promoção da sociedade, seja no campo científico, cultural, artístico. O que eu gostava de destacar é que as fundações são entidades que, com os seus recursos e com o que são capazes de criar - e não são só recursos materiais - são entidades que põem o que é seu ao serviço da comunidade e do interesse geral.

E durante a pandemia?
Tiveram um papel muito importante sobretudo na rapidez de resposta. No campo da pandemia recordo que um dos primeiros fundos que foi criado de apoio financeiro foi o fundo de uma grande fundação portuguesa. Mas depois a ser feito multiplicou-se. Mas as fundações também foram muito impactadas pela pandemia, quer ao nível dos seus rendimentos, quer ao nível do emprego, quer, ainda, ao nível da limitação que impende sobre a capacidade de desempenho das suas missões. Eu lembro-me, na fundação onde eu trabalho, um dos programas que foi muito impactado foi o programa do voluntariado. Na pandemia as fundações tiveram bem e fizeram justiça à sua reputação de serem seres empreendedores, criativos e ágeis na resposta. E depois fizeram o que é próprio das fundações, que é darem o que têm. Darem dinheiro, darem serviço, darem apoio.

É a primeira mulher presidente do Centro Português de Fundações e isso é uma marca.
É verdade e isso alegra-me. A causa das mulheres é uma causa em aberto, da representatividade e da paridade. A marca que eu quero deixar é de procurar consolidar o setor fundacional, para que seja capaz de gerar melhor valor para a cidade: capacitação, aprendizagem entre pares, mais diálogo entre as fundações, uma rede de entreajuda entre as mais capazes e as mais vulneráveis.

No Plano de Recuperação e Resiliência há algum capítulo dedicado ao apoio das fundações?
Não, não há, e devia haver. Não só para as fundações. Todo o Plano de Resiliência está como que fechado à sociedade. O PRR é um instrumento importantíssimo, mas está centrado no investimento do Estado. Pronunciámo-nos e dissemos o setor da economia social e as fundações têm que ser parte ativa desse plano. Não se constrói a resiliência da sociedade sem envolver a sociedade.

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