Tem custado ao Banco de Portugal adaptar-se ao quadro institucional decorrente da criação do euro. A melhor prova disso é a fraca capacidade de intervir no ordenamento do sistema bancário nacional. As necessárias decisões acontecem quase sempre tarde, de forma pouco consistente e com escasso escrutínio público. Como se pode alterar esta situação, dentro dos limites impostos pelas regras da zona euro, em que os bancos centrais nacionais respondem sobretudo ao BCE? A resposta é difícil, mas ajuda compreender e reconhecer melhor o problema..O Banco de Portugal nasceu de facto de um banco falido, foi ajudado pelo Estado, e ganhou força através das receitas do monopólio da emissão monetária. Durante largas décadas, graças a um sistema monetário que impunha restrições ao papel do Estado, o Banco cresceu em importância política e financeira. Foi o principal banco da regeneração, dofontismo e das classes abastadas que muito investiram na dívida pública nacional. Essa herança entrou em declínio com o fim do fontismo e a ascensão de novas forças políticas. A crise financeira de 1891 foi uma escolha governamental que reflectiu a perda da importância do Banco. Ao longo do período do fim da monarquia, da República e do Estado Novo, o Banco nunca mais teve o papel predominante que tivera anteriormente. Como em outras partes do mundo ocidental, a pertença do país ao sistema do padrão-ouro era a fonte dessa importância..Nos anos de forte inflação republicana, era o governo que virtualmente comandava o Banco. E, sem paradoxo algum, Salazar manteve o Banco à distância, tendo-se abstido de substituir o governador republicano herdado, passando-se duas décadas sem que nomeasse um novo governador, nomeando depois alguém à beira da reforma, para depois virtualmente deixar o Banco nas mãos de um importante vice-governador (que, felizmente, transitou para o período da democracia, embora efemeramente)..Com o 25 de Abril de 1974 e a "revolução" que se seguiu, o Banco de Portugal voltou a ganhar força e uma grande força. Entre 1974, data em que deixou de ser um dos poucos bancos centrais privados do mundo ocidental, e a criação do euro, em 1999, ganhou peso político. Foi nele que se tomaram importantes decisões sobre a condução da política monetária nacional, que a inflação e a balança externa desequilibrada tornaram mais relevante. E foi ele que carreou importantes decisões sobre política orçamental, em particular por via das intervenções do FMI, em 1977 e 1983..Esses anos "dourados" são ainda a base de vida do Banco de Portugal e têm de ser mais bem entendidos. Na verdade, o papel do Banco na gestão das reservas externas do país e nas primeiras intervenções do FMI foi dado pelos governos e não resultou de competências exclusivas ou únicas da instituição na condução da coisa financeira e monetária. Encurtando razões, as intervenções do FMI em 1977 e 1983 foram obra de Mário Soares, que assim ganhou força política. Foi também o Banco de Portugal um instrumento crucial na criação da imagem de Portugal como o "bom aluno" da zona euro, um papel que o futuro viria a provar como sendo altamente contraproducente. Mais uma vez, tal foi obra da política, a saber, do cavaquismo..Há importantes louros na história do Banco, louros de pessoas que o governaram, de técnicos competentes que defenderam opções em que acreditavam, e de alguns milhares de funcionários que trabalharam horas a fio na condução da instituição. Mas esses louros são fundamentalmente técnicos, não políticos, e não traduzem uma estratégia coerente, como não podiam traduzir, nem seguiram um rumo claro de desenvolvimento e consolidação institucional. Não há exagero nestas palavras, haverá talvez alguma falta de espaço, num tema que tem de ser explorado com grande cuidado de interpretação e de investigação..Os anos vistos como de glória acabaram com a criação do euro, pela simples razão de que o papel principal do Banco de Portugal passou para o BCE e o correspondente sistema de bancos centrais..Todavia, o Banco teve um fugaz novo protagonismo com a mais recente (e espera-se que última) intervenção do FMI e da troika. O Banco apoiou o pedido de intervenção, dado o seu comprometimento com o sistema criado, mas, como anteriormente, o pedido foi político, embora, desta vez, aos partidos se tenha juntado um punhado de dirigentes de grupos grandes devedores ao exterior. Aqui, o Banco de Portugal esteve mal, pois foi ele que carreou um modelo de intervenção que veio a provar-se contraproducente. Para além de ter aceitado o convívio da parte interessada, isto é, dos bancos que deveria supervisionar, então apenas indirectamente..A necessidade de mudança é reconhecida em várias frentes. Como levá-la a cabo? O governo pouco ou nada pode fazer, dado o quadro do euro, o Parlamento está limitado a perguntas, e o BCE, longe, porventura nem reconhece o problema. A mudança terá de ser desenhada internamente e será preciso partir de um novo espírito de ligação com o sistema financeiro nacional. Para que ela aconteça será importante começar por reconhecer a própria história, as suas limitações, os seus traços principais. Ainda por cima porque, todas as contas feitas, essa história tem mais de positivo do que de negativo..Professor universitário e investigador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.