Chile: violência marca aniversário da revolta social a uma semana do referendo
A Praça Itália de Santiago do Chile voltou a ser a Praça da Dignidade, enchendo-se com mais de 25 mil pessoas no domingo (18 de outubro), um ano depois do início dos protestos por maior igualdade social no país. A manifestação, a uma semana da consulta popular em que os chilenos vão dizer se querem ou não mudar a Constituição que herdaram da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), começou de forma pacífica, mas acabou marcada por atos de violência e duas igrejas queimadas.
Uma das igrejas que ardeu foi a de São Francisco de Borja, usada regularmente pelos Carabineros (a polícia chilena) para cerimónias institucionais, com os bombeiros a conseguirem conter as chamas. O mesmo não aconteceu na Igreja da Assunção, uma das mais antigas de Santiago com 150 anos de história, tendo o seu campanário acabado por cair. Vídeos de manifestantes a aplaudir e a gritar "deixa cair, deixa cair" foram divulgadas nas redes sociais.
Twittertwitter1317980495091798017
O governo chileno condenou os atos de violência, apontando para "grupos minoritários" no meio dos manifestantes que assinalavam de forma pacífica o primeiro aniversário dos protestos. "O governo tem consciência de que os grupos violentos vão tentar continuar a provocar danos", disse o ministro do Interior e da Segurança, Víctor Pérez, reiterando a vontade do governo de que "todas as diferenças entre os chilenos sejam vistas através dos canais democráticos".
"Queimar igrejas é uma expressão de brutalidade", afirmou o ministro. Segundo as autoridades, uma pessoa morreu (foi baleada durante um ataque a um carro da polícia e o caso está a ser investigado) e pelo menos 580 foram detidas durante os protestos. Além das igrejas queimadas, houve saques, atos de vandalismo e confrontos entre os grupos encapuzados e a polícia.
A 18 de outubro de 2019, os protestos por causa do aumento do preço do bilhete no metro de Santiago foram o ponto de partida para a revolta social, transformando-se num movimento contra a desigualdade e o modelo económico neoliberal do país. Nas ruas, os chilenos exigiam reformas no sistema de pensões, saúde ou educação (parcial ou totalmente nas mãos de privados).
As manifestações foram reprimidas com violência por parte dos Carabineros, resultando na morte de mais de 30 pessoas e mais de três mil feridos, além de mais de oito mil detidos. Houve mais de 8500 denúncias de violações dos direitos humanos ao longo do último ano. Quase 500 agentes foram investigados por causa dos abusos durante os protestos, mas em julho só 16 polícias tinham sido afastados.
Em resposta aos protestos, o governo do presidente Sebastián Piñera (conservador) decretou o estado de emergência e o recolher obrigatório, colocando pela primeira vez desde os tempos da ditadura a segurança de Santiago do Chile nas mãos dos militares. Além disso, reverteu o aumento dos preços dos transportes e os partidos políticos aprovaram a realização da consulta popular.
A pandemia de covid-19 - que já matou mais de 13 600 chilenos e infetou quase 500 mil - e as medidas implementadas para a tentar conter serviram para esfriar os protestos, a partir de março, e a consulta, inicialmente prevista para 26 de abril, acabou adiada para 25 de outubro. Mas nas últimas semanas, os chilenos têm voltado às ruas, à medida que deixam o confinamento e que questionam também a resposta do governo à covid-19.
No primeiro aniversário do início da revolta social, os chilenos voltaram contudo em força às ruas - ainda assim, 25 mil é um número inferior aos maiores protestos de 2019, que chegaram a reunir um milhão de pessoas.
De manhã, o ambiente era de festa, com os manifestantes, muitos a usar máscaras por causa da pandemia, a cantar e dançar. A polícia, que tinha sido mobilizada, cedeu o espaço na praça. Mas ao final da tarde tudo mudou, com grupos encapuzados a protagonizar atos de violência, saques e vandalismo.
A consulta popular sobre a necessidade de mudar Constituição de 1980 foi a principal concessão das autoridades para tentar, em novembro, travar as manifestações.
Segundo as sondagens, cerca de 80% dos chilenos prevê votar a favor de reescrever a Constituição, herdada do tempo do ditador Augusto Pinochet e que limita o papel do Estado. Apesar de haver figuras da direita a fazer essa escolha, o consenso fica por aí, não sendo claro que modelo de país querem os chilenos a seguir.
Mais de 60% defendem que deve ser uma Assembleia Constituinte a redigir o novo texto, sendo a outra opção uma assembleia em que metade dos membros pertencem ao atual Congresso e a outra metade é eleita de propósito - a primeira hipótese é vista como podendo criar uma Constituição radicalmente mais diferente da atual.
Caso a alteração da Constituição vença, os membros da Constituinte serão eleitos a 11 de abril de 2021, ao mesmo tempo das eleições municipais e para os governadores. As presidenciais chilenas serão em novembro.
Para aprovar um artigo, tem de haver uma maioria de dois terços da Assembleia Constituinte, o que promete não ser fácil.
O modelo de economia de mercado herdado de Pinochet colocou o Chile com o segundo maior PIB per capita da América do Sul em 2019 (só atrás do Uruguai), quase 50% maior do que o argentino ou o dobro do colombiano. A percentagem dos chilenos abaixo do nível de pobreza caiu de 68,5% em 1990 (quando noutro plebiscito os chilenos afastaram Pinochet) para os 25,3% em 2009 e os 8,6% em 2017.
Mas o crescimento económico, baseado na iniciativa privada como motor para o desenvolvimento, abertura ao exterior, respeito pelo direito de propriedade e tratamento igual para investimentos nacionais e estrangeiros, reflete-se no custo de vida, sendo o Chile um dos países mais desiguais da OCDE. O salário médio é de 550 dólares por mês e em 60% dos lares os salários não são suficientes para cobrir os custos.
Os defensores do sistema atual dizem que este permite mudanças, mas lentamente, temendo as consequências de uma mudança rápida e apontando os casos da Argentina ou a Venezuela.
A aproximação da consulta popular e a covid-19 deixam para segundo plano as comemorações do 500.º aniversário da descoberta do estreito de Magalhães, que se assinala esta quarta-feira, com uma cerimónia em Muelle Prat, em Valparaíso, onde estará o presidente chileno, Sebastián Piñera.
O português Fernão de Magalhães, ao serviço da coroa espanhola, foi o primeiro europeu a navegar o estreito no sul do Chile, em 1520, durante a viagem de circum-navegação que não chegaria a concluir (morreu nas Filipinas em 1521). A viagem seria concluída pelo espanhol Juan Sebastián Elcano, que dá nome ao navio-escola de Espanha que está desde domingo no estreito para assinalar o feito.
O navio-escola Sagres iria refazer a viagem de Magalhães, mas por causa da pandemia acabou por regressar a Portugal.