João Botelho: "Sou o último dos que com esta idade ainda dançam, saltam e divertem-se"

De Conversa Acabada ao recente Peregrinação, os filmes de João Botelho estão em retrospetiva no LEFFEST. Aos 69 anos, o cineasta confessa que sente a falta do gosto coletivo de descobrir o cinema.

Para João Botelho, os mestres que o ensinaram a respeitar o cinema merecem tratamento especial. Assim, não se refere a Manoel de Oliveira, Jean-Marie Straub ou Jean-Luc Godard, mas ao "Sr. Oliveira", o "Sr. Straub" e o "Sr. Godard". Ao mesmo tempo, quando o LEFFEST apresenta uma retrospetiva da sua obra, ele é o primeiro a ter consciência de que, muitas vezes, é identificado não como criador de filmes, mas homem da noite e adepto do Benfica - para ele, trata-se, afinal, de preservar o silêncio em que o pensamento ainda é possível.

Que sentimentos experimentas perante a retrospetiva dos seus filmes no LEFFEST?

É uma coisa muito estranha. Foi tudo muito rápido, não tinha dado conta de ter feito tantos filmes. Há pouco tempo, em Madrid, revi Conversa Acabada, que, afinal, foi rodado há 38 anos... Não me pareceu mal. Mas é esquisito porque, quando revejo um filme que fiz, aquilo já não me pertence - pertence às pessoas que o veem, mesmo se, de alguma maneira, eu estou lá metido. As retrospetivas têm sempre algo de doloroso, parece que é o fim de uma coisa... Ora, eu quero continuar.

Será que há nos filmes uma espécie de autobiografia?

Encontro, sobretudo, uma certa coerência - aquilo que fiz corresponde mais a uma ideia de cinema do que a uma preocupação de contar esta ou aquela história. Há um modo de filmar, talvez se possa mesmo identificar um estilo, que está presente desde o início.

Um modo primitivo de filmar?

É algo que aprendi com o Sr. Oliveira: nunca esquecer a tradição. Não se trata de copiar os filmes dos outros, mas sim preservar uma memória, não esquecer que o cinema tem uma história. Agora, acontece-me mesmo encontrar em alguns filmes mudos sinais mais contemporâneos do que nos filmes atuais. O Sr. Straub também me ensinou a não dizer "moderno", aplicando antes essa mesma palavra: "tradição".

Serão, talvez, os pais do cinema, a começar por Griffith...

Sim, também Griffith, mas não só. A questão é que o modo de filmar é mais importante que as histórias que se contam. Um dos defeitos que, por vezes, encontro nos meus filmes vem daí: é muito visível o modo de filmar, as pessoas podem sentir-se um bocadinho perdidas. Pode haver todo um pensamento de enquadramento, luz, sombras... que impede a fluidez: é uma atitude com virtudes e defeitos que não abdica de dizer que o cinema tem uma tradição, podia ter sido uma arte, mas foi o negócio que prevaleceu.

Que negócio é esse?

Hoje em dia, as salas de cinema são ocupadas em 90% por miúdos que vão ver desenhos animados com os pais e jovens adolescentes que vão ver super-heróis - não é uma questão portuguesa, acontece assim no mundo inteiro. Há uma vitória do entretenimento sobre o pensamento do modo de filmar. Quando um filme tem três mil planos e outros tantos efeitos sonoros, alguém dá atenção a alguma coisa? Não, ninguém dá atenção, ninguém vê. O que triunfa é uma certa euforia que, reconheço, também gera coisas engraçadas e divertidas... Mas a ideia do pensamento foi arredada de muito cinema que se faz hoje. Daí que encontremos em algumas séries de televisão americanas melhores atores, melhores autores, no fundo, melhor cinema.

Seja como for, se pensarmos em Griffith, Renoir ou Bergman, o certo é que podemos encontrá-los na net e, como se diz agora, vê-los em streaming. Que resta, então? Já não é a mesma coisa?

A obra está lá... mas falta a celebração coletiva, passou a ser um trabalho individual: "eu" posso ver aquilo sozinho! Desapareceu essa ideia de que se podia ir a uma sala escura, todos se calavam e era possível experimentar uma emoção coletiva. Triunfou o individualismo e, como é óbvio, não é uma questão exclusiva do cinema: o "eu" sobrepôs-se ao coletivo. Por vezes, isso torna-se inquietante porque envolve a perda da aprendizagem coletiva e a possibilidade de o "eu" se dissolver numa certa comunhão. Como o Sr. Godard já nos avisou, "eles" não procuram a evolução das formas, apenas querem o impacto mediático e o sucesso imediato - deixou de haver uma luta pelas ideias e pelo progresso das formas.

Pensando nesta retrospetiva no LEFFEST, que filme ou filmes da tua obra conseguiram gerar essa comunhão?

Conversa Acabada foi um fenómeno de divisão, metade a gostar, metade a não gostar... Creio que Um Adeus Português ou Tempos Difíceis geraram essa comunhão. Houve uma altura em que aquilo que eu fazia seria, talvez, muito arriscado, acabando por obter um impacto internacional mais forte do que internamente. Quando adotei outra atitude, com Filme do Desassossego ou Os Maias, procurando lutar contra o esquecimento, enfim, fazendo serviço público, os filmes começaram a funcionar melhor em Portugal do que lá fora... Mas o mais difícil é conseguir que os adultos voltem às salas - Os Maias terá sido o filme que mais conseguiu isso.

Quer isso dizer que, apesar de tudo, ainda há alguma disponibilidade que decorre do interesse pela nossa herança literária?

Sim, porque as pessoas podem ter lido ou apenas julgarem que leram Os Maias, mas persiste na sua memória como um dos grandes romances do século XIX português. Mas não é necessariamente por ter que ver com literatura. Poderia ser, por hipótese, um filme sobre o Amadeo de Souza-Cardoso ou as fotografias do Carlos Relvas - há referências em relação às quais os adultos ainda têm algum interesse; os miúdos, não sei... Mas não é tanto uma questão de cultura, é sobretudo uma questão de educação: o sistema educativo português não é suficientemente atrativo e exigente.

Deveria haver um contacto das crianças com o cinema promovido, antes do mais, pela escola?

Sem dúvida. Há um menosprezo pela história do cinema que importa contrariar. Os pensadores da história do cinema, como o Sr. Godard, continuam a ser minoritários.

As crianças e os jovens estão a ser mais educados pelo cinema ou pela telenovela?

Nem por uma coisa nem por outra - estão a ser educados, não exatamente pelas fake news, mas pelo carácter mundano das coisas, pela sua facilidade. Hoje, já ninguém fala com os outros. O Google resolve uma dúvida em 30 segundos... mas 90% daquilo é lixo e consumo. Os fait divers, as notícias ridículas e pequeninas, a vida íntima, tudo isso passou a ser mais importante do que as obras - as pessoas leem pequenos resumos e acham que sabem tudo. Ao mesmo tempo, quero ser otimista e não posso deixar de lembrar que há uma minoria que também é forte, mas são casos individuais, não há ligação entre eles, não há diálogo.

As coisas eram diferentes quando começaste a fazer cinema?

Existia o coletivo. Antes do cinema, lembro-me de que, em Coimbra, havia um tipo que sabia de jazz e chamava-nos para escutarmos o último disco do Miles Davis em casa dele... Na casa de outro, líamos em voz alta o Quarteto de Alexandria. Havia formas coletivas de aprendizagem.

E deixou de haver?

Quando apareceu, a televisão matou um pouco do cinema. Mesmo assim, era um acontecimento coletivo: a família via e discutia. Depois, cada um passou a ter uma televisão no seu quarto. Agora, já nem tem televisão - há computadores e iPhones, é um individualismo virtual. Não há toque, não há pele, não há discussão. Tudo isso me inquieta, porque o reforço do individual reforça a manipulação dos indivíduos. Assistimos a uma vingança dos ignorantes sobre o saber, contra a surpresa. Muitas pessoas não querem ir ao cinema para serem inquietadas: querem ser confortadas e confirmar o que já sabem. No limite, as pessoas querem saber da vida privada dos autores, mas não querem saber das obras - ora, eu posso ter uma vida privada estapafúrdia, mas as obras são sérias.

Nesse aspeto, terás consciência de que muitas pessoas, eventualmente espectadores de cinema, te reconhecem mais como homem da noite e adepto do Benfica...

Cada vez menos adepto do Benfica - aquilo está a correr muito mal, gosto mais de futebol do que da palhaçada à volta do futebol. Mas homem da noite, sim, é verdade: se calhar, sou o último dos homens que, com esta idade, ainda dançam, saltam e divertem-se.

Mas o que é a noite? Uma cultura? Uma utopia?

É uma ideia da dança... É o Nietzsche [riso]: "Só acredito num Deus que saiba dançar." É a tal ideia de comunhão - nessa noite, ainda há sentido coletivo. E a eletrónica não é uma dança de engate, nem sequer de par, é realmente uma dança coletiva em que cada um dança como quer.

O certo é que há um cliché que associa a noite apenas ao consumo do álcool.

Sim, é verdade, mas eu bebo pouco, não tenho ressacas. Sempre fui noctívago e isso, aliás, tem também que ver com a educação dos filhos. Como tive filhos com diferenças de cerca de cinco anos, só encontrava o silêncio às duas da manhã - o trabalho passou a ser à noite, sempre. Para mim, o pensamento tem de ser no silêncio.

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