Nós, ibero-americanos

Há palcos de mais, no mundo de hoje, para polarização e antagonismo; e palcos de menos para respeito mútuo, debate genuíno e aprendizagem recíproca.
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Várias organizações internacionais baseiam-se em afinidades forjadas pela história e estão consolidadas, entre outros, pelo poderosíssimo fator da identidade linguística. É o caso da Organização da Francofonia, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP,) ou mesmo, em certa medida, da Commonwealth.

Mas a Conferência Ibero-Americana (CIB) e os seus organismos setoriais constituem, do meu conhecimento, a única entidade internacional de base linguística que se funda não numa mas em duas línguas: o espanhol e o português. E esta característica distintiva resulta do facto de, na sua génese, em 1991, ter estado a vontade de articular o conjunto da América Latina e o conjunto da Península Ibérica - isto é, de não reduzir a organização ao diálogo entre Espanha e os países saídos dos seus domínios coloniais.

Esta contribuição de Portugal para que seja o mundo ibérico europeu a relacionar-se com o mundo latino-americano seria razão bastante para a nossa política externa investir na CIB. Mas há outras duas igualmente fortes. Por um lado, a dinâmica ibero-americana é uma forma específica, e particularmente operativa, da relação mais geral entre a Europa e a América Latina. Por outro lado, a interação paralela de Portugal e do Brasil com os países africanos da CPLP potencia uma triangulação euro-americana-africana que, tendo um eixo central no Atlântico, se estende às margens do Pacífico e do Índico.

Portanto, não devia causar nenhuma admiração a intensificação dos laços latino-americanos com a União Europeia, quer no âmbito da Cimeira UE-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), quer no quadro das lógicas de integração sub-regional representadas pelo Mercosul, pela Aliança do Pacífico ou pelo SICA (Sistema de Integração Centro-Americana), quer através dos acordos entre a UE e países como o Brasil, o México e o Chile, o Acordo Multipartes com a Colômbia, o Peru e o Equador, ou o Acordo de Associação com a América Central.

Ainda é mais interessante notar as recentes iniciativas de aproximação latino-americana e ibero-americana à CPLP, concretizadas na entrada do Uruguai, do Chile, da Argentina e, futuramente, do Peru como observadores associados, assim como na aquisição deste estatuto pela Organização Ibero-americana para a educação, a ciência e a cultura (OEI) - sendo a primeira vez que uma organização internacional solicita e obtém a associação à CPLP.

Tudo isto é possível porque a CEI integra as duas línguas e se vincula ao equilíbrio entre elas. É uma batalha constante de Portugal, não só em proveito próprio mas também, e sobretudo, porque são os mais de 600 milhões que falam as línguas de García Márquez e Guimarães Rosa (ambas entre as cinco mais faladas no mundo) que fazem verdadeiramente a ponte entre a América Latina e a parte mais ocidental da Europa e afirmam uma cada vez mais evidente força global do presente e do próximo futuro.

A raiz desta força não é a identidade de situações nem a unanimidade de posições. Como outras organizações internacionais, a CIB vive da convicção nas virtudes do multilateralismo, da vinculação aos princípios da Carta das Nações Unidas e da ideia de que, reunindo 19 países americanos e três europeus em torno de características históricas, linguísticas e sociais partilhadas, acrescenta valor próprio à ordem internacional. Mas nada disto requer nem a hegemonia interna de qualquer Estado membro nem alinhamentos ideológicos ou cristalizações geopolíticas. A CIB tem-se fortalecido sempre que se concebe como um espaço de cooperação sul-sul e sul-norte, orientada para a capacitação das pessoas e das instituições; e sai enfraquecida sempre que é vista, por exemplo, como mera soma das cooperações bilaterais, em especial da cooperação espanhola, ou então como um espaço de confrontação entre campos políticos intra-latino-americanos excessivamente polarizados.

A atual secretária-geral, a costa-riquenha Rebeca Grynspan, tem precisamente acentuado a CIB como um quadro de cooperação e não de confrontação. O que não é fácil, mas absolutamente necessário, numa região tão vibrante mas também dilacerada no plano ideológico como é a América Latina. Portugal apoia enfaticamente a sua visão. Há palcos de mais, no mundo de hoje, para polarização e antagonismo; e palcos de menos para respeito mútuo, debate genuíno e aprendizagem recíproca. Como a União para o Mediterrâneo (a única organização que reúne os 43 países ligados por este grande mar interior, incluindo Israel e Palestina), a CIB é o único espaço em que todas as nações latino-americanas, de par com Espanha, Portugal e Andorra, podem convergir para ações e bens comuns. O que, concedo, dá menos dramatismo teatral às cimeiras, em contraste com homéricas disputas do passado, mas torna-as mais úteis.

Como assinalou o Presidente português, numa das mais inspiradas e calorosamente recebidas intervenções da Cimeira de Antígua Guatemala, a CIB é um quadro óbvio para trabalhar em agendas multilaterais tão urgentes como as do clima, dos oceanos e das migrações. Ela tem sido um catalisador da cooperação sul-sul e triangular (envolvendo, por exemplo, Portugal, Espanha, um ou dois países latino-americanos e/ou um país africano). Ela tem contribuído para avanços em agendas cruciais de direitos humanos, igualdade de género, povos indígenas e inclusão social. Os seus programas de mobilidade académica, de implementação de sistemas de avaliação do ensino superior ou de troca de experiências na universalização da educação básica ajudam aos processos de capacitação e desenvolvimento dos diferentes Estados.

Portugal conta a partir deste ano com um escritório da OEI em Lisboa. Participa em oito programas de cooperação, em áreas que vão da governação à propriedade industrial, da investigação científica ao ensino, dos arquivos e museus ao cinema. As suas universidades e politécnicos acolhem quase 12 mil estudantes ibero-americanos. O Instituto Camões colabora com o congénere espanhol na promoção do valor internacional das duas línguas. Estão em curso ou em preparação projetos conjuntos com países latino-americanos para cooperação com Estados terceiros. Fazemo-nos representar ao mais alto nível em todas as cimeiras, e sempre com mensagens de apoio à concertação respeitadora da diversidade. Realizamos tudo isto porque temos a noção clara da importância estratégia da relação entre a Europa e a América Latina - e do papel decisivo dos países ibéricos nessa relação. E é por isso que a participação na CIB é uma das linhas de força da nossa política externa.

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