Fugir pela vida. Uma em cada 97 pessoas é um refugiado
Na quinta-feira, o Burundi, país africano tão pequeno quanto pobre, passou a ter um novo presidente. Antes sequer do funeral do anterior chefe de Estado, que morreu dez dias antes (oficialmente de ataque cardíaco, mas segundo a AFP possivelmente de covid-19), realizou-se a cerimónia da tomada de posse de Evariste Ndayishimiye. Este antigo general de 52 anos prometeu, ou ameaçou, continuar o trilho do antecessor, o que numa sociedade mergulhada na violência não é um cartão-de-visita invejável.
De um total de 400 mil pessoas que saíram do país desde 2015, estão contabilizados 333 mil refugiados nos países da região, Ruanda, República Democrática do Congo (RDC), Tanzânia e Uganda - este último o que mais refugiados acolhe no continente. Na tomada de posse, Ndayishimiye criticou aqueles que tinham partido como pessoas "sem coração" e que "traíram" o país. "Aqueles que fugiram do Burundi e foram queixar-se aos colonizadores, o que ganharam?", perguntou, para depois mostrar uma abertura para com os que criticou, com novo ataque verbal: "Aqueles que usaram sempre o diálogo como pretexto para perturbar o país, voltem, estamos prontos para falar."
A este país, que viveu os horrores de um genocídio com o vizinho Ruanda nos anos 1990, regressaram no ano passado um pouco mais de 21 mil refugiados com a ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Esta agência da ONU divulgou nesta semana o relatório anual sobre o deslocamento forçado em todo o mundo. Os números ajudam a traçar um cenário no qual o mais cândido cidadão terá dificuldades em destacar um ponto positivo. Há 79,5 milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo - uma em cada 97 -, o que representa um aumento de cerca de nove milhões em relação ao ano anterior e perto do dobro dos 41 milhões registados em 2010. "Este número de quase 80 milhões é obviamente motivo de grande preocupação", afirmou Filippo Grandi, o alto-comissário da ONU para os refugiados.
Segundo o diplomata italiano, 73% dos refugiados procuram asilo num país vizinho, o que contraria a ideia feita de que inundam o Ocidente. "Esta continua a ser uma questão global, uma questão para todos os Estados, mas uma questão que desafia mais diretamente os países mais pobres, não os países ricos, apesar da retórica", disse Grandi.
Continuando em África, o número de pessoas obrigadas a deslocar-se na região subsariana atingiu um nível recordista, com 6,3 milhões de refugiados, dos quais 57% são crianças, e 18,5 milhões de deslocados internos, isto é, pessoas obrigadas a sair de sua casa sem terem cruzado a fronteira. O país que mais contribui para o número de refugiados é o mais novo de África, o Sudão do Sul: 2,2 milhões de pessoas procuraram abrigo nos países vizinhos. Segue-se a RDC, com mais de 900 mil refugiados. No antigo Zaire, cuja população calcula-se que exceda os 80 milhões, há cinco milhões de deslocados internos, quase metade da população portuguesa. Resultado de uma transição no poder não violenta, há 2,1 milhões de pessoas de regresso ao ponto de partida.
Além dos conflitos étnicos, de desastres naturais (como os ciclones Idai e Kenneth, que atingiram Moçambique, Zimbabwe e Malawi), de doenças como o ébola e da chamada insegurança alimentar, um termo que esconde a subnutrição e a fome, o extremismo islâmico também tem a sua quota-parte no êxodo africano. Uma região atingida em especial é o Sahel, a faixa a sul do Sara e que, grosso modo, atravessa o continente da Mauritânia à Eritreia.
Na semana passada, a ACNUR lançou um apelo urgente aos doadores para a obtenção de 166 milhões de euros, um valor que servirá para ajudar milhões de pessoas forçadas a fugir da escalada de ataques de múltiplos grupos armados na região central do Sahel. A agência relata ataques de grupos islamistas e de bandos criminosos no Mali, no Níger e no Burkina Faso, que paralisaram a vida nas cidades e zonas fronteiriças, no que resultou em 3,1 milhões de deslocados, entre os quais 831 mil refugiados. A agência refere que mais de três milhões, incluindo 831 mil refugiados, estão deslocados na região, o que faz do Sahel uma das crises de deslocados de crescimento mais rápido do mundo.
A minoria que ninguém quer
"O Bangladesh não é o meu país. Quero voltar para a nossa terra. Se o Governo da Birmânia não nos tivesse matado e torturado não tínhamos fugido", disse Kadir Ahmed, um entre mais de 850 mil refugiados da comunidade muçulmana rohingya à Human Rights Watch (HRW), em 2018. Mas esse desejo é uma impossibilidade porque o regime birmanês tem tratado sistematicamente de persegui-los, numa sistemática operação de limpeza étnica.
O êxodo para o Bangladesh não faz esquecer que os cerca de 600 mil rohingyas que permanecem no estado de Rakhine, na Birmânia, continuam a ser alvo do Governo, confinados a campos e aldeias sem liberdade de movimentos e privados do acesso aos cuidados básicos. Mas, por outro lado, este povo também não é propriamente bem-vindo no Bangladesh, quer em país algum, o que levou esta minoria a ser considerada uma das mais perseguidas. Segundo o ACNUR, mais de 1,5 milhões de pessoas não têm qualquer nacionalidade.
Há duas semanas, as autoridades da Malásia detiveram 269 refugiados rohingyas que chegaram numa embarcação danificada. Segundo a HRW, as autoridades malaias tencionavam devolver o navio às águas internacionais, mas um motor avariado impediu a manobra. Cerca de 50 refugiados saltaram do barco e nadaram para terra, onde foram detidos, enquanto o barco com os restantes passageiros foi rebocado. Desde janeiro, numerosas embarcações, cada uma com centenas de rohingyas, deixaram os campos sobrelotados de Cox"s Bazar para a Malásia.
Nos últimos dois meses, invocando a emergência sanitária da pandemia de covid-19, as autoridades malaias têm bloqueado a passagem das embarcações; segundo o Governo foram bloqueadas 22 embarcações desde 1 de maio. "Em vez de empurrarem os rohingyas de volta ao mar para morrerem, os países do sudeste asiático deveriam trabalhar em conjunto em planos de resgate dos barcos, fornecendo ajuda e abrindo a porta à proteção internacional", comentou Brad Adams, diretor da delegação da Ásia da HRW.
Não será surpresa para ninguém que a guerra na Síria, iniciada em 2011 e sem fim à vista, é responsável pelo maior número de refugiados (6,6 milhões) e deslocados (6,1 milhões). Não bastava Damasco querer recuperar Idlib, a província onde os grupos extremistas se agruparam, e a Turquia ameaçar com uma limpeza étnica os territórios dominados pelos curdos, as sanções impostas pelos Estados Unidos desde esta semana ameaçam arruinar ainda mais os sírios e levar a uma nova vaga de refugiados. Estes procuram sobretudo a Turquia: 92% dos 3,9 milhões de refugiados que Ancara acolhe são sírios.
Fado venezuelano
Mas há um país que oficialmente não está em guerra, e que graças ao seu regime e ao combate que outros países lhe fazem está no topo dos que contribuem para o êxodo: a Venezuela, de Nicolás Maduro. Cerca de cinco mil pessoas abandonaram o país a cada dia que passou em 2019 devido à profunda crise económica e política. No total, mais de 4,4 milhões de venezuelanos fugiram, a maior parte para a Colômbia (1,8 milhões), o Peru, o Equador, o Brasil e o Chile.
Segundo o ACNUR, 3,6 milhões não tinham sido contabilizados nas estatísticas anteriores. "Na maioria dos países, os venezuelanos vivem da economia informal e muitas pessoas, mesmo as qualificadas, tiveram, infelizmente, de viver uma vida basicamente de subsistência, vendendo legumes nos mercados, fazendo trabalho doméstico, tem sido realmente muito precária. E com os confinamentos, a maioria destes trabalhos desapareceram quase da noite para o dia", disse o alto-comissário da ONU.
A vizinha Colômbia, que recebe grande parte destes refugiados, tem, por sua vez, de lidar com os problemas internos. A guerrilha narcomarxista FARC pode ter deposto as armas e assinado o acordo de paz em 2016, mas a violência e a criminalidade prosseguem: desde então registaram-se mais 400 mil deslocados. Segundo o relatório do ACNUR, há oito milhões de colombianos deslocados no seu próprio país.