Filmes a levar na mala

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Se alguém perguntasse ao pesquisador brasileiro Saulo Pereira de Mello que filmes ele levaria para uma ilha deserta, a resposta seria: "Só um. Limite." E mostraria sob sua cama as doze latas da única cópia do filme, que guardava com sua própria vida - se o nitrato pegasse fogo, Saulo e o filme iriam embora em chamas. Limite é um filme de 1931, por um ardente cineasta amador chamado Mario Peixoto, de 21 anos. Nunca foi exibido comercialmente. Na verdade, só se sabe de uma única projeção, às dez horas de uma manhã de domingo, num cinema do Rio que seu diretor conseguiu alugar e só para convidados. E, mesmo assim, o dono do cinema o fez assinar um termo de responsabilidade no caso de a plateia quebrar as cadeiras ou atirar objetos à tela. E porquê essa possibilidade de fúria? Porque Limite não contava uma história.

As personagens, dois homens e uma mulher, eram incompreensíveis; o cenário, um barco e uma ilha; e algumas tomadas podiam durar cinco minutos sem nada acontecer ou os atores dizerem algo - nem poderiam porque, num ano em que, no mundo inteiro, o cinema completava sua transição para o sonoro, Limite ainda era mudo. Mas o filme tinha lances sequências espetaculares, dignos da Abel Gance de Napoleão ou o Eisenstein de O Couraçado Potemkin, dois expoentes do cinema de vanguarda. Nem por isso Limite teve carreira comercial - e talvez Mario Peixoto nem quisesse essa carreira. O facto é que, por ficar secreto para mais de duas gerações, Limite tornou-se um mito do cinema brasileiro. Até que sua única cópia, protegida durante décadas pelo querido Saulo debaixo de sua cama, finalmente veio à luz. Com a ajuda de instituições internacionais, inclusive com a participação de Martin Scorsese, ele realizou seu sonho de restaurar o filme, que existe hoje em DVD.

Saulo morreu em abril último, aos 87 anos, pela maldita covid. Pois, com todo respeito a ele, se me perguntassem que filmes eu levaria para a famosa ilha deserta, Limite - que afinal assisti em DVD - não seria um deles. Mas, graças aos DVD, que tornaram os filmes muito mais portáteis do que as pesadas latas de celuloide ou mesmo os antigos VHS, não me faltaria escolha. E sem precisar de repetir diretor.

Comigo iriam Das Kabinett des Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, Der Letzte Mann (1924), de F.W. Murnau, Die Büchse der Pandora (1929), de G.W. Pabst, Der Blaue Engel (1930), de Josef von Sternberg, À Nous la Liberté (1931), de René Clair, La Grande Illusion (1937), de Jean Renoir, Pepe le Moko (1937), de Julien Duvivier, Olympia (1938), de Leni Riefenstahl, Les Enfants du Paradis (1945), de Marcel Carné, Roma, Città Aperta (1945), de Roberto Rossellini, La Belle et la Bête (1947), de Jean Cocteau, The Third Man (1949), de Carol Reed, Los Olvidados (1950), de Luís Buñuel, Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, Miracolo a Milano (1950), de Vittorio de Sica.

Levaria também Sommaren med Monika (1952), de Ingmar Bergman, The Earrings of Madame de... (1953), de Max Ophüls, Le Salaire de la Peur (1953), de H-G. Clouzot, Touchez-pas au Grisbi (1953), de Jacques Becker, The Ladykillers (1955), de Alexander Mackendrick, Et Dieu a Créa la Femme (1956), de Roger Vadim, Mon Oncle (1958), de Jacques Tati, The Village of the Damned (1959), de Wolf Rilla, Peeping Tom (1960), de Michael Powell, Die Tausend Augen des Dr. Mabuse (1960), de Fritz Lang, La Dolce Vita (1960), de Fellini, À Bout de Souffle (1959), de Jean-Luc Godard, Il Sorpasso (1962), de Dino Risi, Les Parapluies de Cherbourg (1963), de Jacques Démy. E muitos, muitos outros.

Epa! Estava me esquecendo dos filmes de Hollywood! Mas aqui também a escolha é farta. Eu levaria The Mark of Zorro (1920), de Fred Niblo, Safety Last (1923), de Harold Lloyd, The Thief of Bagdad (1924), de Raoul Walsh, Seven Chances (1925), de Buster Keaton, The Unknown (1927), de Tod Browning, The Love Parade (1929), de Ernst Lubitsch, City Lights (1931), de Charles Chaplin, The Public Enemy (1931), de William Wellman, The Mummy (1932), de Karl Freund, Gold Diggers of 1933 (1933), de Mervin LeRoy, King Kong (1933), de Ernest B. Shoedsack e Meriam C. Cooper, Swing Time (1936), de George Stevens, Maytime (1937), de Robert Z. Leonard, The Women (1939), de George Cukor, Mr. Smith Goes to Washington (1939), de Frank Capra, His Girl Friday (1940), de Howard Hawks, Sullivan"s Travels (1942), de Preston Sturges, The Gang"s All Here (1943), de Busby Berkeley, Laura (1944), de Otto Preminger.

All About Eve (1950), de Joseph L. Mankiewicz, In a Lonely Place (1950), de Nicholas Ray, Ace in the Hole (1951), de Billy Wilder, Scaramouche (1952), de George Sidney, The Bad and the Beautiful (1952), de Vincente Minnelli, The 5000 Thousand Fingers of Dr. T (1953), de Roy Rowland, Roman Holiday (1953), de William Wyler, The Quiet Man (1953), de John Ford, Kiss me Deadly (1955), de Robert Aldrich, Bad Day at Black Rock (1955), de John Sturges, The Killing (1956), de Stanley Kubrick, The Girl Can"t Help It (1957), de Frank Tashlin, Touch of Evil (1958), de Orson Welles, Silk Stockings (1958), de Rouben Mamoulian, I Want to Live (1958), de Robert Wise. The Ladies Man (1961), de Jerry Lewis, Splendor in the Grass (1961), de Elia Kazan, The Manchurian Candidate (1962), de John Frankenheimer, The Birds (1963), de Alfred Hitchcock. Etc. etc. etc.

Sim, seria possível ir para a ilha sem levar The Gold Rush, Citizen Kane, Singin" in the Rain, The Searchers ou Vertigo. Sem levá-los fisicamente, digo. Iriam no coração.

Jornalista e escritor brasileiro

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