Ursula, continuamos com problemas
Eleita à tangente, Ursula von der Leyen entra na nova etapa com expectativas baixas, o que não é necessariamente mau. O que revelou a votação em Estrasburgo? E que problemas se levantam agora?
Seria sempre uma eleição apertada, no Parlamento Europeu mais fragmentado de sempre, num tempo de trincheira sem quartel. Apesar de ter sido eleita com mais votos do que Barroso (2009) ou Santer (1994), nunca um presidente da Comissão teve tantos votos contra e tão poucas abstenções. Ou estavam com Ursula, ou estavam contra Ursula. A questão de partida para o dia eleitoral em Estrasburgo estava em saber quem queria Ursula von der Leyen trazer para o seu lado.
O discurso dessa manhã consolidou-a no campo antinacionalista, de que ela sem esforço faz parte, numa clareza de posições cosmopolitas, humanistas, sociais e políticas que terminaram num agradecimento às bancadas nacionalistas por expressarem frontalmente o seu voto contra. Trouxe uma agenda salomónica para colher apoios entre conservadores, liberais, sociais-democratas e verdes? Sim, trouxe. Nem podia ter feito outra coisa. Uma presidente de um colégio de comissários com três famílias políticas habitualmente representadas não poderia senão enunciar um roteiro que congregasse vontades e encaixasse propostas minimamente compatíveis e coerentes. Mal estaríamos se o candidato ao lugar afunilasse a sua grelha de ação, excluindo pontes com outras bancadas, numa proteção clubística da sua. Não só não teria qualquer sucesso eleitoral como revelava fraco entendimento da dinâmica comunitária e ainda menos da sensibilidade do momento político que vivemos no Ocidente.
Por outras palavras, a senhora Von der Leyen fez o que tinha a fazer para ser eleita, comprometendo-se com a agenda certa, evitando um turbilhão de retrocessos processuais, sempre difíceis de gerir politicamente. Quer isto dizer que devemos esquecer os efeitos da ultrapassagem do Conselho à eleição direta do presidente da Comissão? Não necessariamente. O processo, em tese, dá um passo em frente na aproximação entre eleitores e eleitos, embora seja frágil na blindagem jurídica plasmada nos tratados, dado que continua a caber formalmente ao Conselho, após interpretar os resultados das eleições para o Parlamento Europeu, iniciar o processo de escolha do candidato à Comissão. Em boa verdade, foi isto que aconteceu. Weber, além de mau, era ilegível, e todos os outros que se apresentaram nas eleições caíram por intransigências várias, a começar pela falta de acolhimento noutras bancadas e a acabar na repulsa que suscitavam entre membros do Conselho.
Há muito que estava escrito (e não só aqui) que a solução mais realista viria com um outsider (suscitei, a espaços, o nome de Merkel), acabando numa solução de consenso próxima do perfil da chanceler. Vale a pena também recordar que, além dos tratados, a história da integração tem posto a iniciativa no Conselho e não no Parlamento Europeu, dinâmica que não pode ser acusada de antidemocrática, dado que o presidente da Comissão (bem como todos os comissários por si escolhidos) precisa sempre de ser aprovado por um Parlamento eleito diretamente pelos cidadãos da União. A questão que se coloca não está, a meu ver, tanto na falta de democraticidade, mas na existência ou não de substância política à altura dos desafios que os próximos cinco anos trarão. Ora, a aprovação de Ursula von der Leyen ainda não permite responder à pergunta. Aliás, levanta quatro novas questões que ditarão o alcance dessa capacidade política.
A primeira está na concretização do que enunciou em discurso e na escolha dos comissários para o pôr em prática. Descarbonização da economia, alargamento das políticas sociais ou mais investimento comunitário terão sempre perna curta se o orçamento comunitário permanecer desequilibrado nas suas prioridades e mesmo enfraquecido de receitas, para mais com a saída de um importante Estado membro. O discurso foi omisso sobre isto. Outra dimensão que passou ao lado foi a consolidação do alargamento aos Balcãs como radial de estabilidade continental e de relacionamento com a Rússia e a Turquia. Aliás, o discurso é frágil sobre o papel geopolítico da UE, seja com instrumentos diplomáticos, militares ou comerciais. A concretização destes ângulos precisa, por isso, de ser mais bem enunciada. A escolha acertada dos comissários pode dar o alcance que a palavra ainda não atingiu.
A segunda está na forma como irá lidar com o calendário doBrexit e o novo primeiro-ministro britânico. A perspetiva de um par de meses de despique aberto entre Londres e Bruxelas e de total falta de confiança entre os novos protagonistas anteciparam no discurso uma nova extensão do prazo. Contudo, cabe aos Estados membros essa decisão, não à Comissão. Vale a pena lembrar que está previsto a Comissão entrar em funções no dia seguinte ao fim do prazo acordado com Londres (31 outubro). Esta nova etapa do Brexit com Boris Johnson tem tudo para sugar a agenda de Ursula von der Leyen antes mesmo de tomar posse. O que disse até agora não permite perceber que força terá para lidar com o tema.
A terceira resulta dos efeitos gerados pelos votos favoráveis à sua eleição dados pelo Fidesz (húngaro), pelo PiS (polaco) e pelo 5 Estrelas (italiano). Não foi certamente pelo seu discurso, sem qualquer cedência a agendas nacionalistas, que esses deputados aprovaram a candidata. O que é certo é que compensaram as oposições de sociais-democratas alemães, holandeses e franceses, dando-lhe uma vitória por curta margem. Isto tem um preço. Uma coisa é apresentar um roteiro abrangente para uma audiência pró-UE (como fez); outra é colher, sem forçar, o voto determinante de bancadas nacionalistas. Arrisco dizer que as expectativas orçamentais em negociação foram o grande denominador comum a esse apoio, o que tende a aliviar Ursula von der Leyen de uma regressão nas propostas sobre imigração e asilo.
Por fim, mas não menos importante, o efeito na coligação alemã do voto contra do SPD, parceiro da CDU no governo federal em dez dos últimos 14 anos, período no qual Ursula von der Leyen foi titular de três ministérios. Independentemente da legitimidade na crítica à desvalorização do Spitzenkandidaten, o SPD parece forçar uma rutura em Berlim com vista a eleições antecipadas, acreditando que a CDU pode ser punida e que a ascensão dos Verdes é imparável e suficiente para reinventar uma coligação à esquerda.
Tudo isto estaria correto se as perdas do SPD estivessem estancadas, se não tivessem assumido um papel secundário na relação futura entre a Comissão e a bancada social-democrata no Parlamento Europeu (dando vantagem ao PSOE e ao PD italiano) e, por fim, não promovessem a ideia de uma Alemanha internamente instável, mas que teima em vender ambição e robustez à União com a presidência da Comissão que não ocupa desde 1958. No meio de tudo isto, Ursula von der Leyen é apenas mais uma peça a fazer andar as máquinas da Europa.
Investigador universitário