"Não revelaram as capacidades necessárias para suprir as necessidades de uma criança." Sílvia mal percebeu estas últimas palavras, chorava compulsivamente. Acabara de ler a carta registada que dizia que ela e o marido eram "inaptos" para a adoção. Sentia toda a justificação como um atestado de incompetência para ser mãe, ela que tem dois filhos biológicos e a quem os outros pais confiam os filhos. Escreveram as técnicas: "Baixa capacidade de empatia, baixo autocontrole, muito autocentrada, grande exigência e rigidez, baixo suporte emocional, pouca capacidade de adaptação, estratégias educativas desadequadas com os filhos, existência de padrões conjugais instáveis (divórcio de ambos) ", etc.."Desatei a chorar nos Correios. Pensei: 'O que é que eu fiz de mal a estas senhoras para dizerem coisas tão horríveis de mim?'", recorda Sílvia Saraiva, 55 anos, endocrinologista. Ela e o marido, Frederico Teixeira, 44 anos, ortopedista, candidataram-se à adoção há cinco anos". Recusaram-lhes a candidatura, recorreram e venceram. Voltaram à lista de adoção mas esbarraram na idade e em regras que dizem ser "subjetivas e pouco transparentes"..As entidades responsáveis pelo sistema de adoção no país dizem que as rejeições são pontuais. Responde a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML): "Na maioria dos casos, não chega a haver uma recusa, porque as pessoas ao longo do processo vêm a reconhecer que não dispõem de condições e desistem. Outra coisa são as pessoas que, após serem selecionadas, nunca chegam a adotar por não lhes ter sido proposta uma criança. Permanecem em lista de espera até atingirem o limite de idade ou, resultante das reavaliações, deixarem de reunir condições. Também pode ocorrer a desistência de candidatos, para quem a adoção deixou de fazer sentido após aquele prolongado tempo de espera.".Sílvia mora em Lisboa, onde a SCML é a responsável pelas adoções. "As pessoas não desistem, quando muito desistem por exaustão. É raro entregarem uma criança antes de 5/6 anos após entrarem em espera; o tempo médio são nove anos. As pessoas não abandonam o processo, o processo é que as abandona.".A SCML assegura que o tempo de espera depende da idade da criança, da saúde, se está com irmãos. "Em média, o tempo de espera de candidatos à adoção de crianças entre os 0 e 3 anos, sem problemas de saúde e sem deficiência, ronda cinco e seis anos; dos 4-6 anos esperam quatro e a partir dos 7 é praticamente inexistente.".A Segurança Social, que faz as adoções no resto do país, indica que em 2017 rejeitou nove candidaturas "por não reunirem os critérios ajustados à parentalidade adotiva"..Sílvia Saraiva e Frederico Teixeira candidataram-se à adoção em julho de 2014, ela tinha 50 anos e ele 39, e sem filhos em comum. Os filhos de Sílvia tinham 23 e 15 anos. Queriam adotar uma criança até aos 3 anos mas alargaram para os 6, sem restrições à cor da pele e admitiram problemas de saúde, desde que não fossem doenças mortais ou incapacitantes. "Temos dois filhos e não temos o direito de lhes deixar um legado quando não foram eles que decidiram adotar.".A mãe de Sílvia foi professora numa instituição de acolhimento, onde ouvia as histórias daquelas crianças e dizia: "Vou tirar de lá uma criança. Sempre quis ter filhos e sempre quis adotar. Não o fiz mais cedo porque acho que para adotar são precisas mais condições do que para ter filhos biológicos", conta Sílvia.."Não aptos".Esperaram seis meses e não havia uma decisão sobre a candidatura, como obriga a lei. Fizeram a preparação, entrevistas, testes psicológicos, e nada. Questionaram a SCML , insistiram, 13 meses depois receberam a resposta: "Não aptos." Frederico enviou um e-mail dizendo que não tinham visitado a casa nem falado com os filhos, pediu para serem recebidos. Sem êxito. "Foi pesado, descreviam-me como um monstro. Tenho dois filhos, bons alunos [um é médico, o outro está a tirar Psicologia]), faço voluntariado com miúdos diabéticos há 30 anos, os pais confiam-me os seus filhos nas semanas de campo. Não sou essa pessoa que descrevem." Sílvia é fundadora da Associação de Jovens Diabéticos de Portugal..Frederico tem uma explicação para o que aconteceu: "Não estão habituados a ser postos em causa, a ser criticados, é como um feudo. Quando pusemos em causa o sistema, a resposta foi rápida: estão eliminados.".Tinham 60 dias para recorrer da decisão, e foi o que fizeram. "Mas é invulgar e eu percebo porquê, a pessoa sente-se posta em causa", comenta Frederico. Alega que a equipa de avaliação, três pessoas, descontextualizou o que disseram e viraram isso contra eles. Exemplificam com uma das entrevistas, em que Sílvia referiu o irmão que morreu aos 18 anos e chorou, o que terá sido classificado "como emocionalmente instável"..Criticaram um castigo que Sílvia deu ao filho mais novo, ralhou-lhe por ele "não cumprir os mínimos, porque iria para a escola com os fatos de treino que usava para dormir em vez da roupa de marca. Registaram negativamente a proibição de os filhos terem Facebook antes dos 16 anos e de o computador ficar na sala para ninguém se isolar no quarto. O casal sentiu preconceito quando disseram que os filhos não eram batizados. Sílvia e Frederico defendem que devem ser eles a decidir, o que acabou por acontecer com o mais novo..Disseram-lhes que os testes psicológicos a Sílvia tinham revelado "um baixo poder de empatia", mas sem indicarem os valores, alegando que eram sigilosos. "Quando foram obrigados a entregar os resultados ao tribunal, e só nessa altura tivemos acesso à documentação, percebemos a recusa. Os testes tinham dado um valor muito alto, quase no máximo. Como não podiam mentir descaradamente, nunca disseram o valor", concluiu Frederico..O Conselho Nacional da Adoção (CNA) informou o DN de que "os candidatos, ao abrigo do Código do Procedimento Administrativo, têm direito de acesso a toda a informação que lhes diga respeito"..O CNA foi criado com a última revisão da lei da adoção, em 2015, para supervisionar o sistema de adoção em Portugal. Integra os quatro organismos que o gerem: os institutos da Segurança Social do continente, da Madeira e dos Açores, além da SCML. São, também, estas as entidades que acolhem as crianças e os jovens. Sílvia considera que não faz sentido: "Quem guarda as crianças e quem decide para onde é que elas vão deviam estar completamente separados. Devia haver investigação cada vez que o processo não é tratado em tempo útil, para perceber onde é que emperra. Percebemos que nos forçavam a ter crianças mais velhas, isto porque lhes dá jeito ter as crianças a render, mas é uma vergonha saírem de lá para o mundo do trabalho. Quanto é que as instituições recebem por cada criança? Porque é que um bebé entregue na maternidade para adoção espera três anos por um casal?".Perguntas que o DN também fez, sem grande êxito. Relativamente às prestações pagas às instituições particulares de solidariedade social, as respostas foram evasivas: depende da idade, do estado de saúde, etc. Os valores variam entre os 800 e os 1100 euros..Tribunal dá razão ao casal.Sílvia e Frederico recorreram da decisão da SCML e o tribunal deu-lhes razão: "Sendo a candidatura à adoção um instrumento de realização do direito da criança de ter uma família nova, capaz de a ajudar a crescer de forma equilibrada, integrada e a constituir a sua identidade, e rememorando o essencial da prova produzida, examinada e ponderada, leva-nos a concluir que os recorrentes possuem idoneidade para criar e educar qualquer criança ou jovem e que as razões do pedido de adoção são legítimas, razão por que o recurso merece integral provimento.".Os juízes criticaram a SCML pela demora na avaliação da candidatura, por não ter realizado diligências como a visita a casa e entrevistas aos filhos, por fazer deduções erradas. Por exemplo, o facto de ambos serem divorciados constituir instabilidade conjugal. Pelo contrário, consideram que têm "uma relação estável, uma cumplicidade notória e um entendimento mútuo, que se propaga à família, nomeadamente aos filhos da recorrente"..A administração da SCML não comenta casos concretos. Mas a diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da instituição na altura do processo, Teresa Antunes, foi substituída por Isabel Pastor. O tribunal foi rápido a tomar uma decisão, a 14 de janeiro de 2016, cinco meses depois da entrega do recurso, mas Sílvia e Frederico gastaram dez mil euros para obter justiça. Além disso, atrasou todo o processo..Sílvia e Frederico voltaram a entrar na lista para adoção e, em 2016, foram pais da Eva. Dois anos depois, convocaram o casal para lhes dizer que teriam de adotar uma criança mais nova do que a filha. "Explicaram que era política da SCML não adotar alguém mais velho do que as outras crianças da família, confundem o que é a opinião com o que está na lei", protesta Frederico. Sílvia tinha 53 anos, "teria sempre mais de 50 de diferença, a não ser que a criança tivesse mais de 5 anos, mas não podia por ser mais velha do que a irmã, portanto, é uma pescadinha de rabo na boca"..A lei diz que a diferença de idades entre o adotante e o adotado não deve ser superior a 50 anos, um critério estipulado quando a esperança de vida em Portugal estava muito longe dos atuais 81 anos. Ainda assim, não será alterado. "O CNA não tomou nenhuma iniciativa no sentido de alterar o limite de idade previsto, nem tem conhecimento de nenhuma diligência nesse sentido.".A última vez que Sílvia e Frederico estiveram com a equipa de adoção foi em finais de 2018. "Tentaram que fôssemos nós a desistir, nunca o faríamos", diz Sílvia, lamentando: "Temos condições para ser pais de uma criança que vai crescer numa instituição. Toda a gente fala no superior interesse da criança e não há um real interesse na criança."."Têm a faca e o queijo na mão".A barreira da idade também acabou com o sonho de Margarida e de João (nomes fictícios). Candidataram-se em fevereiro de 2011, perceberam depois que teoricamente estavam na lista para adoção, mas a instituição sabia que tinham deixado de ter condições para adotar devido à idade. Repete-se a história do nascimento de um filho biológico..Margarida, de 54, e João, de 56, são quadros superiores, ela na área da comunicação e ele nas Forças Armadas. Vivem em Cascais, logo foi o Instituto da Segurança Social (ISS) que geriu o processo de adoção. Candidataram-se em 2011 a uma criança caucasiana, até 3 anos, eventualmente 4, com ligeiros problemas de saúde, por exemplo diabetes..Disseram desde o início que queriam ser pais biológicos e que se tinham sujeitado a tratamentos. Em 2013, nasceu uma menina, tendo eles avisado a equipa de adoção durante a gravidez. Voltaram a ser contactados dois anos após o nascimento. Disseram-lhes, então, que o adotado deve ser mais novo do que a irmã.."Eu tinha 50 anos quando nasceu a Leonor [nome fictício]. Como a criança a adotar tinha de ser pelo menos um ano mais nova, o que nunca nos tinha sido dito, desde o dia em que a Leonor nasceu, este era um não processo. Não havia a possibilidade de adotarmos por causa da minha idade, mas ninguém nos ligou a dizer que era impossível, bastava fazer as contas. E nós continuámos a acreditar que podíamos adotar", protesta o João..Só que o processo de adoção não começou em 2011 e não os informaram da alteração de critérios se tivessem um filho biológico. Indigna-se a Margarida: "Onde é que está escrito na lei que a criança a adotar tem de ser mais nova, ou mais velha, que tem de ter pelo menos um ano de diferença? Se estivesse alicerçado num parecer científico, que nos devia ser disponibilizado, tudo bem, mas não foi assim." Por outro lado, se tivessem adotado e nascesse depois um filho biológico, a criança adotada seria sempre mais velha..Receberam a resposta positiva à candidatura em sete meses. Um ano depois, Margarida engravidou, estava de sete meses quando avisou o ISS, perguntaram-lhe se continuavam interessados: "Mais do que nunca", respondeu. Pediu rapidez, para não haver muita diferença de idade entre os irmãos..Não está na lei, mas a equipa quis.Informaram-na de que o processo estava suspenso. "Porquê? Está na lei?", questionou. Disseram que não estava na lei mas a equipa assim o entendia, que estaria suspenso um ano a um e meio. "Compreendo, mas achei muito tempo. Uma mãe pode ter dois filhos com um ano de diferença e até pode ter gémeos.".Aos 6 meses da Leonor, telefonaram do ISS para novas diligências e Margarida e João acreditaram que iam levantar a suspensão. Mas nada avançou, com Margarida sempre a telefonar para a ISS, na maior parte das vezes sem ninguém que a atendesse. Um dia conseguiu e disse: "Passou um ano, o tempo está a correr contra nós, o meu marido tem mais de 50 anos. Asseguraram que o nosso lugar na lista não seria ultrapassado." Nunca indicaram qual era o lugar e quanto tempo demoraria até receberem uma criança. Concluiu João: "Todo o esquema está montado para ser subjetivo, e o facto de não passarem a informação cria mais subjetividade. A subjetividade dá poder a quem decide.".Tinha a Leonor dois anos e meio quando foram convocados para uma reunião. Só nessa altura lhes referem que a criança a adotar teria de ser mais nova do que a filha biológica, o que era matematicamente impossível..Recorda Margarida: "Explodi. Disse que desde que a minha filha nasceu têm apresentado critérios subjetivos dos quais não fomos informados de início. Quando perguntamos onde está isso na lei, dizem que são regras da equipa. Não há nada a dizer que o processo suspende quando se é mãe biológica. Pedi para anteciparem o processo, expliquei as razões, mas claro que fizeram o que queriam.".Depois dessa reunião e de detetada a impossibilidade, ainda receberam uma carta a dizer que havia novas regras na sequência da Lei n.º 143 /2015) e que o processo de adoção teria de ser reiniciado. Não responderam. Para quê? João tinha 54 anos. Um ano depois, nova carta informava que o caso estava encerrado uma vez que não responderam..João reforça que o fator subjetividade permite todas as arbitrariedades. "Falta regulamentação. Quanto menos regras, menor é a transparência e maior é a discriminação." Lamenta Margarida: "Eles têm a faca e o queijo na mão."